À MARGEM DO TEMPO - CAPÍTULOS 11, 12 E 13


CAPÍTULO ONZE
Voltemos uns dias atrás, o dia em que Jorge recebera o convite das mãos do patrão. Carolina, nesse dia, não se conteve e foi em direção ao pai, mal ele descera do carro. Ela não conseguia esconder a sua ansiedade, e com isso não encobria os seus sentimentos.
O Senhor Ernesto, percebendo a agitação da filha, antecipou-se às perguntas. Abraçou-a, beijou-lhe a testa e disse:
– O convite foi entregue, sem comentários, como tu me pediste. A reação dele não me surpreendeu. Eu não estranharia se ele aparecesse por aqui antes do dia marcado, por não se conter em aguardar o dia da festa. O convite fez-lhe um bem enorme. E, pelo jeito, a ti também.
Carolina enrubesceu e procurou disfarçar. Não o conseguiu. Abraçou e beijou o pai, e com uns trejeitos engraçados dissipou a tensão de que era presa.
O pai dirigiu-lhe uns elogios condescendentes, afagou-lhe os cabelos, enlaçou-a nos braços e conduziu-a para dentro de casa. Lá, encontraram Dona Tereza, que não compartilhava nem um pouco com as ansiedades da filha. E se alguma ela sentia, nada tinha a ver com os ideais e os sonhos de Carolina.
A mãe chamou a atenção da filha por algum motivo sem importância, como se a verdadeira repreensão viesse oculta, servindo a outra apenas de válvula de escape para as suas tensões, que Dona Tereza mal conseguia disfarçar.
O Senhor Ernesto, sempre compreensivo com o jeito impaciente com que Dona Tereza costumava tratar a filha, toda vez que Carolina assumia atitudes infantis, passou o braço em volta da cintura da esposa, beijou-a no rosto elogiando-lhe o perfume e desviou o rumo da prosa.
Agradecida ao pai, Carolina disse mais algumas gracinhas dirigidas à mãe, e saiu correndo às gargalhadas, como uma provocação. Esse era o modo dela de perdoar a mãe, com as sutis graças de uma menina que atingira a mocidade, sem perder os encantos da infância.
Quem também estava sob seus encantos era Jorge, que deitado na cama, com os olhos grudados no teto, parecia ter sido enfeitiçado por uma bruxa malvada, que o deixara imobilizado, enquanto só os seus pensamentos podiam mover-se.
Se nos atrevêssemos a penetrar nos seus pensamentos, correríamos o risco de ser atropelados, diante da velocidade desenfreada com que percorriam o caminho da mente ao coração.
O jovem estava rememorando os fatos do dia, e seria injusto não lhe conceder o direito ao silêncio e à solidão. Ele precisava ficar sozinho e calado, para que pudesse repassar a sequência dos fatos que haviam preenchido o vazio, que se havia formado dentro da sua alma.
De que nos adiantaria invadir o íntimo da sua mente, se lá não encontraríamos segredo algum. As mentes jovens não pensam senão com o coração, e este sempre nos remete às mesmas revelações, não importando o nome da mulher amada.
Aproveitemos os seus momentos de êxtase, para lembrar que Jorge não se preocupava com a sua outra vida, já tinha mais de uma semana. Carolina funcionou como uma borracha nas escritas mentais do nosso jovem. Apagou-lhe da mente tudo que o ligava ao passado. Ou seria ao futuro? A casa do Andaraí, a loja de antiguidades de Ipanema e os antigos amores e as saudades de Lúcia foram temporariamente apagados de sua memória.
De Lúcia, Jorge trazia recordações de dez anos de convívio, de Carolina, não mais de dez horas. Verdade é que o amor de dez anos traiu-o e o abandonou, e o de dez horas chegava, sem promessas, nem compromissos.
Ele apegou-se a este segundo, com a mesma determinação com que negara ao primeiro o direito ao perdão. Carolina era a remissão do pecado de Lúcia. Por uma, a outra resgatava a sua imagem de traidora. Haveria o risco de amar as duas, mas, 140 anos de distância haviam de garantir a separação de uma paixão da outra.
Coincidência, ou não, encontramos Jorge questionando os mesmos pontos que colocamos para nossas reflexões. Já que é assim, aproveitemos a nossa sintonia e prossigamos a nossa caminhada. A preocupação de Jorge era estar-se iludindo com um simples ato de cortesia. Ele e Carolina se viram uma única vez, ela foi atenciosa e ele, gentil. Ela deixou transparecer certa emoção, mas isto poderia ter sido fruto da sua imaginação.
O convite dirigido a ele não fora descabido. Apesar de um único encontro, houve um clima de cordialidade e afinidade, entre ambos. No entanto, por se tratar de uma data tão íntima, a sua presença nos festejos natalinos e natalícios, poderia sugerir que o convite encerrava algo além de uma simples cortesia.
Jorge sonhava por ser correspondido em seus sentimentos amorosos. Ele não conseguia esconder, porém, o receio de ser rejeitado, de vir a ser abandonado e relegado à solidão. Era a lembrança de Lúcia, atravessando 140 anos de distância, para fazê-lo temer que se repetissem os mesmos sofrimentos e decepções.
Não fosse o fato de estarmos caminhando juntos, desde o início do drama vivido por Jorge, passaríamos por loucos, misturando o futuro com o passado. E de modo tão incoerente para os que só encontram a comprovação dos fatos na razão e na ciência, que nós e Jorge devemos guardar os nossos segredos só para nós, sem comentar nada com ninguém.
Somente nós sabemos que Jorge vive uma aventura em que espaço e tempo se anulam, e dão lugar a fatos que ora registramos, sem o pejo do deboche ou o peso de um trote. Não negamos, nem confirmamos os fatos, só deixemos os registros ao sabor do que vem à nossa mente.
Esperemos a chegada do amanhã, que bem poderá ser ontem, sem qualquer outro compromisso que não seja o de aguardar a chegada.

CAPÍTULO DOZE
Amanhecera o dia 25 de dezembro de 1869, dia de festa no mundo cristão, dia de festa no coração de Jorge. A humanidade comemoraria o nascimento do Cristo, ele, o reencontro com Carolina. No mundo inteiro, os homens se curvariam diante do altar e agradeceriam suas conquistas ao longo do ano. Na casa do Senhor Ernesto, Jorge se ajoelharia aos pés de Carolina a agradecer-lhe o convite para a sua festa de 18 anos.
Jorge dormira muito mal, despertara esgotado, por uma noite agitada e repleta de pesadelos. Poupo-vos, meus leitores, os detalhes desses sonhos que nada acrescentariam à realidade dos fatos. Eram medos e inseguranças, reprimidos e disfarçados desde que conhecera Carolina, e que agora se faziam presentes nos seus sonhos, atormentando-o com ameaças e tragédias.
Ele acordara suado e ofegante, ansioso por se aproximar de Carolina, sem se dar conta de que vivia o epílogo de um sonho, de um triste e amargurado sonho. Não vos conto o sonho, porém não vos nego o direito de saber que ele sonhara que Carolina não o amava.
Jorge abriu os olhos e reconheceu o quarto onde vivia. Procurou relaxar e recuperar o controle dos nervos. As suas mãos tremiam, e o coração disparado custava a se recuperar. Ele ainda tentou recordar o sonho, mas logo desistiu, por perceber que estava tomando um caminho que não o levaria a um final feliz.
A manhã passou sem que ele percebesse, pois tratou de fazer uma arrumação na loja, mudando peças de lugar e redecorando diversos ambientes. Assim, era útil como empregado, e prático como enamorado. O trabalho cura muitos males, mas nenhum outro como o da ansiedade.
Jorge distraiu-se no trabalho, como já vinha fazendo nos últimos tempos. Enquanto trabalhava, o tempo passou e ele pouco se deu conta de que já começara a entardecer. A loja ficou arrumada e pronta para o dia seguinte ao Natal. Ele é que precisava arrumar-se para a festa de Carolina.
Escolhido o melhor traje, Jorge tratou de lavar o corpo e a alma, antes de se vestir. Diante do espelho, gostou do que viu. Respirando fundo, gostou do que sentiu. Estava pronto!
Um ruído de cascos fez com que Jorge se sobressaltasse, dando um pulo da cadeira, onde sentara à espera do patrão. Um amplo sorriso e uma saudação natalina adentraram a loja pelos lábios do Senhor Ernesto. Abraços e tapinhas nas costas celebraram o encontro dos dois.
Deram-se os braços e foram em direção ao carro, que os aguardava com o cocheiro e uma bela moça de sorriso tímido e faces pálidas. Ele era o empregado já seu conhecido, por trazer e buscar o patrão na rotina diária. Mas, e ela, quem era ela?
Sofia, minha sobrinha, respondeu-lhe o Senhor Ernesto, como se lesse o seu pensamento.
Jorge estendeu a mão e beijou a ponta dos dedos da moça, com a mesma suave gentileza que tanto encantara Carolina, quando se conheceram. A palidez deu lugar a um tom rosado, nas faces de Sofia, que tentou disfarçar, mas sem êxito.
Jorge sentou-se de um lado e o Senhor Ernesto do outro, ficando Sofia entre os dois. Toda vez que o carro fazia uma curva um pouco mais fechada, ela roçava o braço no corpo de Jorge. Logo, ela se desculpava e se encolhia, mas era estimulada a relaxar, diante do sorriso franco e amistoso com que Jorge reagia aos seus sentimentos de culpa.
Conversaram durante a viagem, não somente os dois, mas também o Senhor Ernesto, que estava muito solto e falastrão. A ausência de Dona Tereza parecia fazer um bem enorme àquele homem, deixando-o mais vontade e bem mais autêntico. Era assim que pensava Jorge, enquanto media e pesava as atitudes e as palavras do patrão.
A proximidade da mansão do Senhor Ernesto já revelava os sinais da festa, com uma grande movimentação de carros que chegavam vindos da praia e a caminho do centro de Botafogo. A casa estava engalanada, à espera da nata da sociedade local. E esta não decepcionaria os anfitriões, fazendo-se presente em larga escala.
Jorge foi ficando tenso, diante do ambiente festivo que podia vislumbrar, à medida que o carro se aproximava da casa. O coração bateu mais forte, assim que pararam e desceram do carro.
Ele estendeu a mão para que Sofia descesse, e gentilmente deu-lhe o braço. Caminharam juntos e se aproximaram da varanda, onde se encontrava Carolina. Sofia estava um pouco nervosa, e se agarrava ao braço de Jorge com mais força do que seria necessário. Carolina reparou e não gostou de toda aquela proximidade.
Jorge não se deu conta do que estava acontecendo, e sorriu para ela, esboçando um cumprimento mais formal, quase uma reverência, numa atitude sutil de gentil bom humor.
Carolina não demonstrou agrado, e fez um gesto cordial, mas destituído de simpatia ou sensibilidade. Jorge não entendeu o que se passava, e desejou-lhe felicidades pela data natalícia. O agradecimento prosseguiu no mesmo tom, seco e pouco cortês.
Carolina virou-se para o rapaz que se mantinha calado, ao seu lado, e apresentou-o a Jorge, como sendo seu noivo, Henrique. Jorge sentiu as pernas tremerem, porém mantendo o autocontrole, estendeu a mão e cumprimentou o rapaz, que parecia tão atordoado quanto ele.
Henrique sempre demonstrara interesse por Carolina, os seus pais eram amigos e teriam muito gosto na união dos filhos, mas Carolina jamais dera qualquer sinal favorável a um relacionamento mais íntimo entre ambos. Agora, ela assumia um noivado que estava muito distante da realidade, cabendo a ele, por aceitação e atração, aceitar o rótulo e se calar.
Sofia cumprimentou a prima, pelo aniversário e pelo noivado. Jorge, recuperando a calma, desejou a Carolina felicidades, e convidou Sofia para dançar. Não que a música o inspirasse ao bailado, mas ele precisava sair de perto de Carolina, antes que seu coração explodisse.
Da varanda, avistava-se o salão, iluminado por lustres de cristal que transformavam o brilho das velas numa cascata de luz. Alguns casais dançavam silenciosos, outros conversavam enquanto dançavam e outros simplesmente observavam e comentavam, vez por outra, sobre um ou outro par a dançar.
Assim que Jorge e Sofia começaram a dança, muitos pararam de conversar. Os olhares se voltaram para o par de dançarinos que, com elegância e graça, cadenciavam seus passos ao sabor dos suaves compassos extraídos de seus instrumentos, pelos músicos de uma pequena orquestra de cordas.
Sofia e Jorge se deixaram envolver pela magia do ambiente e pelo encantamento da música, e atravessaram todo o salão, sem se dar conta de que estavam sendo o centro das atenções. Nos primeiros passos, Jorge ainda ficou a remoer na mente o noivado de Carolina. A delicadeza e a suavidade dos gestos de Sofia, porém, logo desviaram os seus pensamentos e os trouxeram para a dama com a qual fazia par.
Carolina acompanhava tudo à distância, confusa e furiosa. Ela não sabia por que razão foi inventar aquela história de noivado, e não entendia o motivo de Jorge ter chegado de braços dados com a prima.
O Senhor Ernesto percebendo a contrariedade da filha e desconfiando do motivo, chegou-se para perto de Carolina, e foi comentando com uma pretensa naturalidade o pedido de sua irmã de levar Sofia à festa. Essa irmã era viúva, e não tinha muitos recursos, dependendo da ajuda do irmão para sustentar a casa. E ele se sentia responsável por muito mais do que apenas contribuir financeiramente para o bem-estar da irmã e da sobrinha.
Diante do pedido da irmã, ele pegara Sofia em casa, antes de passar na loja para trazer Jorge para a festa. E com muito jeito e diplomacia, o pai foi justificando para a filha a razão de Jorge e Sofia terem chegado juntos.
A gentileza e a cordialidade entre os dois eram virtudes naturais de Jorge que, ela Carolina, já tivera oportunidade de usufruir. Carolina ouvia calada e pensativa. Até que, as lágrimas começaram a escorrer-lhe nas faces, e ela se lançou nos braços do pai.
Não fosse estar toda a atenção dos convidados voltada para o casal de dançarinos, a reação de Carolina poderia ter dado muito que falar. Nem os convidados, nem Jorge e Sofia, perceberam o choro de Carolina e o abraço consolador do pai. Nada passou, porém, despercebido a Henrique, que via, ouvia e pensava, sem nada falar.

CAPÍTULO TREZE
Carolina não se conteve, e chorava no ombro do pai. Ela confessou-lhe que mentira para Jorge, dizendo-se noiva de Henrique. Ciúme, somente por ciúme, diante da chegada de Jorge de braço dado com Sofia.
O Senhor Ernesto tranquilizou-a mais uma vez, atribuindo o ato afetuoso à amabilidade do rapaz, que era um traço marcante na sua personalidade. Ele lembrou-a do passeio após a missa, os dois de braços dados e da forma gentil e cavalheiresca com que ele esticou a mão para ajudá-la a descer e a subir no carro. Ele sussurrava no ouvido da filha que, aos poucos, foi-se acalmando e secando as lágrimas.
O Senhor Ernesto aconselhou-a a se reaproximar do rapaz e deixar que ele demonstrasse o seu afeto e admiração por ela. O pai vinha acompanhando o comportamento do jovem, desde que lhe entregara o convite para a festa, e não tinha dúvida que ele nutria um forte sentimento pela filha.
O Senhor Ernesto fez ainda mais um pouco, levando Carolina até junto a Jorge, que, finda a dança, estava só com os olhos no salão e o pensamento distante. O rapaz estremeceu quando se viu diante de Carolina, após girar a cabeça em direção à voz do patrão, que o chamou pelo nome.
O Senhor Ernesto entregou a filha aos cuidados do rapaz, e pediu-lhe que lhe fizesse companhia enquanto ia a dar um recado para Dona Tereza. Henrique, à distância, acompanhava todos os movimentos de Carolina, e suas feições revelavam toda a insatisfação que trazia na alma.
Uns se alegram para a tristeza de outros. Os tristes lamentam o momento de dor, os felizes festejam a expectativa do amor. Henrique e Jorge confrontavam seus sentimentos, alternando-os ao sabor dos caprichos de Carolina.
Jorge convidou Carolina para dançar, e de mãos dadas deslizaram pelo salão, consolando as mágoas da moça e alimentando o orgulho do rapaz. Se ao bailar com Sofia, muitos interromperam a dança para acompanhá-los, agora, com Carolina, todos se afastaram para apreciar a leveza e graça do casal.
Carolina ficou corada e sentiu as pernas tremerem, ao notar que todos os olhares estavam voltados para eles. Com o canto do olho, ela percebeu que Dona Tereza demonstrava insatisfação enquanto conversava com o marido. Ela não entendia a razão da restrição que a mãe fazia à sua aproximação de Jorge, e atribuía essa insatisfação ao fato do rapaz ser um simples empregado da loja.
Os pensamentos da moça não ficaram presos a esses detalhes por muito tempo, pois os movimentos da dança foram provocando-lhe uma incontrolável euforia, levando-a a fixar toda sua atenção e seu olhar exclusivamente em Jorge.
Ele sorria e demonstrava uma indisfarçável satisfação por tê-la ao seu lado, e por poder conduzi-la nos braços, enquanto a música romântica, suavemente marcava o compasso do seu coração. Os convidados balançavam a cabeça, uns, em sinal de aprovação, outros, de admiração, e uns poucos, bem poucos, em desaprovação.
Quem era aquele jovem? A maioria dos convidados da festa não o conhecia. O seu porte nobre e belo impressionava a todos, mais às mulheres, é justo que se diga. Mas, os homens não encontravam motivos para desaprová-lo, a não ser pelo fato de desconhecerem suas origens e a razão para estar entre os convidados.
A música chegou ao fim, os músicos precisavam de um descanso e o casal de enamorados, de um pouco de privacidade. Jorge convidou-a para acompanhá-lo até a varanda. E de braços dados, lá foram os dois, em busca do céu estrelado e da lua crescente, como se não houvesse mais ninguém com direito a apreciar a noite.
Conversaram, se olhando nos olhos e sorvendo cada palavra com a emoção de dois apaixonados. Ali ficariam pelo resto da noite e, quem sabe, pelo resto de suas vidas, se não fossem interrompidos pela chegada de Dona Tereza. Ela, mal disfarçando a sua desaprovação àquela intimidade, viera pedir à filha que voltasse ao salão, pois estavam a dar falta dela.
Carolina desculpou-se com a mãe, e Jorge aproveitou para gentilmente assumir a culpa de haver retirado a moça do salão. As desculpas só pioraram o estado de ânimo da mãe da moça, que já não conseguia disfarçar a sua irritação.
Dona Tereza aproveitou o braço dado com Jorge, que conduzia mãe e filha de volta ao salão, uma de cada lado, e puxou-o para dançar, sugerindo que Carolina fizesse o mesmo com Henrique.
Cavalheirescamente, Jorge tomou-a nos braços, e fazendo um gesto de cabeça, quase imperceptível, como que se desculpou com Carolina, por ter de se afastar da moça.
Henrique não perdeu tempo e se aproximou de Carolina, que obedecendo à sugestão da mãe, saiu a dançar com o rapaz, com a mesma leveza e graça de antes, mas sem o mesmo entusiasmo e prazer de quando estivera nos braços de Jorge.
Dona Tereza é que não escondia a sua satisfação por se sentir abraçada a Jorge, ainda que mantida à distância pelo rapaz, que não estava disposto a dar asas à imaginação da sua dama.
O Senhor Ernesto acompanhara todos os movimentos da esposa, e se mantinha sério e calado, com o olhar indo e vindo da esposa para a filha e destas para os semblantes dos dois jovens cavalheiros.
Ele percebera o desconforto de Jorge e a ansiedade de Henrique. Mas, os dois rapazes não eram o centro das atenções do dono da casa, senão sua esposa, ofegante e contrariada, e sua filha, triste e desconsolada.
Dona Tereza não conseguia disfarçar a sua atração por Jorge, e isso o Senhor Ernesto já pudera observar de outras vezes que estiveram juntos. As duas taças de champanhe que ela tomara, antes de se encaminhar à varanda, contribuíram para o seu comportamento mais impulsivo, e que era preciso ser controlado.
O Senhor Ernesto caminhou em direção ao centro do salão, e com um sorriso amável pediu a Jorge que lhe concedesse o direito à próxima dança com a esposa. Jorge quase deu um suspiro de alívio e Dona Tereza, um berro de raiva.
Jorge aceitou um drinque e ficou a sorvê-lo numa das extremidades do salão, de onde pôde observar o olhar suplicante de Carolina, pedindo-lhe que a resgatasse dos braços de Henrique, e as feições transtornadas de Dona Tereza, enquanto se arrastava zangada nos braços do marido.
A música cessou de vez, para dar lugar às celebrações em homenagem à aniversariante. O Senhor Ernesto disse algumas palavras exaltando a maioridade da filha. Os convivas brindaram pelo futuro de Carolina e se encaminharam para a ceia, que seria servida no salão nobre da residência.
Jorge não conseguiu retomar a companhia de Carolina, devido a uma manobra de Dona Tereza que fez com que a filha formasse par com Henrique. Sofia estava enturmada com um grupo de jovens convidados, e não teve dificuldade para encontrar o seu par.
Sozinho e meio desconsolado, Jorge seguiu em direção ao salão que ficava no fim de um largo e longo corredor. Enquanto caminhava, ele ia relembrando os acontecimentos, e não conseguia conter a sua satisfação, pelos momentos passados com Carolina.
O jantar foi servido, com os lugares marcados à mesa, ficando Jorge bem distante de Carolina. Dona Tereza não estava disposta a correr riscos de ver sua filha se deixar envolver pela presença sedutora do jovem, permitindo que se sentassem próximos e conversassem durante o jantar.
Carolina esticava o olhar, mas não conseguia descobrir Jorge, do outro lado da mesa e fora do seu campo visual. Jorge se contentava com a imagem da moça, gravada na memória. Dona Tereza havia recuperado o controle da situação e ao lado do marido dava as ordens e se fazia o centro das atenções.
Cercado de desconhecidos, que não se dirigiam a ele, nem em palavras e nem em olhar, Jorge foi sentindo que não era bem-visto pelos amigos do patrão. Uns, talvez, já haviam de ter ouvido falar dele, como o empregado da loja. Outros, nunca nada ouviram dele, e nem estavam interessados.
O barulho dos talheres no prato se confundia com o mastigar faminto, e até mal educado de alguns convidados, deixando-o ao mesmo tempo muito incomodado e constrangido. A conversa era fútil, falava-se alto, e às vezes ouviam-se gargalhadas estridentes.
Jorge sentiu falta do silêncio e da solidão do seu quarto. Carolina estava distante dele, e não deveria voltar a se aproximar, como Dona Tereza deixara bem claro, mantendo-os afastados a partir do deslocamento para a ceia.
O Senhor Ernesto percebendo o isolamento a que fora condenado Jorge, dele se aproximou e convidou-o para tomar um licor, servido na sala ao lado. O rapaz agradeceu, e se disse satisfeito com o que comera e bebera.
Jorge aproveitou a presença do patrão para alegar cansaço pelo muito que fizera naquele dia, e necessidade de descansar, pelo tanto que pretendia realizar no dia seguinte. E de nada adiantou os reclamos do patrão e as promessas de dispensa do trabalho na manhã seguinte.
Jorge não estava à vontade, e o Senhor Ernesto já percebera os incômodos do rapaz. Os dois caminharam juntos em direção a Dona Tereza, de quem Jorge primeiro se despediu. A seguir, foram até Carolina, que recebeu com tristeza os cumprimentos de Jorge, e nada pôde fazer senão retribuí-los com um sorriso desconsolado, que marcou o seu final de festa.
Jorge, acompanhado do patrão, foi até o tílburi que o conduziria de volta à loja, onde lá nos fundos, silencioso e solitário, estava o seu quarto a esperar por ele. O barulho da festa que vinha de dentro da casa, deixou-o triste e incomodado. Ele saía da festa levando consigo muito menos do que sonhara, e teria pela frente uma noite bem mais longa do que desejaria ter.
Enquanto o carro rompia a noite com o barulho de cascos ressoando pelas ruas desertas, Jorge ia encolhido no banco, contrariado, entristecido e magoado.
Os ressentimentos corroíam a sua alma, provocando-lhe um sentimento de humilhação que jamais sentira antes. Ele nunca fora discriminado como naquela noite, que começara promissora, mas terminara com um inegável sabor de fracasso.
Jorge ia amargando suas mágoas e ressentimentos, contra tudo e contra todos. No início, ele isentara Carolina de culpas. Mas, com o passar do tempo e com a raiva se misturando com o sentimento de desprezo que sentia na alma, Jorge não poupou ninguém das culpas e da condenação. Até o patrão que nada fez que justificasse cumplicidades com o crime praticado, entrou na sentença final.
Jorge recolheu-se aquela noite, com um sentimento de frustração indescritível, e com uma saudade enorme de sua outra vida. Antes de dormir, pensou em Lúcia, e sentiu falta dela. Lembrou-se da sua loja de antiguidades, e teve uma vontade incontrolável de voltar a ela, e de ser dono do seu próprio negócio.
Quando o sono chegou, veio encontrá-lo a repetir para si – “eu não preciso passar por isso”.

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