À MARGEM DO TEMPO - CAPÍTULOS 11, 12 E 13
CAPÍTULO
ONZE
Voltemos uns dias atrás, o dia em que Jorge recebera o convite
das mãos do patrão. Carolina, nesse dia, não se conteve e foi em
direção ao pai, mal ele descera do carro. Ela não conseguia
esconder a sua ansiedade, e com isso não encobria os seus
sentimentos.
O Senhor Ernesto, percebendo a agitação da filha, antecipou-se
às perguntas. Abraçou-a, beijou-lhe a testa e disse:
– O convite foi entregue, sem comentários, como tu me pediste.
A reação dele não me surpreendeu. Eu não estranharia se ele
aparecesse por aqui antes do dia marcado, por não se conter em
aguardar o dia da festa. O convite fez-lhe um bem enorme. E, pelo
jeito, a ti também.
Carolina enrubesceu e procurou disfarçar. Não o conseguiu.
Abraçou e beijou o pai, e com uns trejeitos engraçados dissipou a
tensão de que era presa.
O pai dirigiu-lhe uns elogios condescendentes, afagou-lhe os
cabelos, enlaçou-a nos braços e conduziu-a para dentro de casa. Lá,
encontraram Dona Tereza, que não compartilhava nem um pouco com as
ansiedades da filha. E se alguma ela sentia, nada tinha a ver com os
ideais e os sonhos de Carolina.
A mãe chamou a atenção da filha por algum motivo sem
importância, como se a verdadeira repreensão viesse oculta,
servindo a outra apenas de válvula de escape para as suas tensões,
que Dona Tereza mal conseguia disfarçar.
O Senhor Ernesto, sempre compreensivo com o jeito impaciente com
que Dona Tereza costumava tratar a filha, toda vez que Carolina
assumia atitudes infantis, passou o braço em volta da cintura da
esposa, beijou-a no rosto elogiando-lhe o perfume e desviou o rumo da
prosa.
Agradecida ao pai, Carolina disse mais algumas gracinhas dirigidas
à mãe, e saiu correndo às gargalhadas, como uma provocação. Esse
era o modo dela de perdoar a mãe, com as sutis graças de uma menina
que atingira a mocidade, sem perder os encantos da infância.
Quem também estava sob seus encantos era Jorge, que deitado na
cama, com os olhos grudados no teto, parecia ter sido enfeitiçado
por uma bruxa malvada, que o deixara imobilizado, enquanto só os
seus pensamentos podiam mover-se.
Se nos atrevêssemos a penetrar nos seus pensamentos, correríamos
o risco de ser atropelados, diante da velocidade desenfreada com que
percorriam o caminho da mente ao coração.
O jovem estava rememorando os fatos do dia, e seria injusto não
lhe conceder o direito ao silêncio e à solidão. Ele precisava
ficar sozinho e calado, para que pudesse repassar a sequência dos
fatos que haviam preenchido o vazio, que se havia formado dentro da
sua alma.
De que nos adiantaria invadir o íntimo da sua mente, se lá não
encontraríamos segredo algum. As mentes jovens não pensam senão
com o coração, e este sempre nos remete às mesmas revelações,
não importando o nome da mulher amada.
Aproveitemos os seus momentos de êxtase, para lembrar que Jorge
não se preocupava com a sua outra vida, já tinha mais de uma
semana. Carolina funcionou como uma borracha nas escritas mentais do
nosso jovem. Apagou-lhe da mente tudo que o ligava ao passado. Ou
seria ao futuro? A casa do Andaraí, a loja de antiguidades de
Ipanema e os antigos amores e as saudades de Lúcia foram
temporariamente apagados de sua memória.
De Lúcia, Jorge trazia recordações de dez anos de convívio, de
Carolina, não mais de dez horas. Verdade é que o amor de dez anos
traiu-o e o abandonou, e o de dez horas chegava, sem promessas, nem
compromissos.
Ele apegou-se a este segundo, com a mesma determinação com que
negara ao primeiro o direito ao perdão. Carolina era a remissão do
pecado de Lúcia. Por uma, a outra resgatava a sua imagem de
traidora. Haveria o risco de amar as duas, mas, 140 anos de distância
haviam de garantir a separação de uma paixão da outra.
Coincidência, ou não, encontramos Jorge questionando os mesmos
pontos que colocamos para nossas reflexões. Já que é assim,
aproveitemos a nossa sintonia e prossigamos a nossa caminhada. A
preocupação de Jorge era estar-se iludindo com um simples ato de
cortesia. Ele e Carolina se viram uma única vez, ela foi atenciosa e
ele, gentil. Ela deixou transparecer certa emoção, mas isto poderia
ter sido fruto da sua imaginação.
O convite dirigido a ele não fora descabido. Apesar de um único
encontro, houve um clima de cordialidade e afinidade, entre ambos. No
entanto, por se tratar de uma data tão íntima, a sua presença nos
festejos natalinos e natalícios, poderia sugerir que o convite
encerrava algo além de uma simples cortesia.
Jorge sonhava por ser correspondido em seus sentimentos amorosos.
Ele não conseguia esconder, porém, o receio de ser rejeitado, de
vir a ser abandonado e relegado à solidão. Era a lembrança de
Lúcia, atravessando 140 anos de distância, para fazê-lo temer que
se repetissem os mesmos sofrimentos e decepções.
Não fosse o fato de estarmos caminhando juntos, desde o início
do drama vivido por Jorge, passaríamos por loucos, misturando o
futuro com o passado. E de modo tão incoerente para os que só
encontram a comprovação dos fatos na razão e na ciência, que nós
e Jorge devemos guardar os nossos segredos só para nós, sem
comentar nada com ninguém.
Somente nós sabemos que Jorge vive uma aventura em que espaço e
tempo se anulam, e dão lugar a fatos que ora registramos, sem o pejo
do deboche ou o peso de um trote. Não negamos, nem confirmamos os
fatos, só deixemos os registros ao sabor do que vem à nossa mente.
Esperemos a chegada do amanhã, que bem poderá ser ontem, sem
qualquer outro compromisso que não seja o de aguardar a chegada.
CAPÍTULO DOZE
Amanhecera o dia 25 de dezembro de 1869, dia de festa no mundo
cristão, dia de festa no coração de Jorge. A humanidade
comemoraria o nascimento do Cristo, ele, o reencontro com Carolina.
No mundo inteiro, os homens se curvariam diante do altar e
agradeceriam suas conquistas ao longo do ano. Na casa do Senhor
Ernesto, Jorge se ajoelharia aos pés de Carolina a agradecer-lhe o
convite para a sua festa de 18 anos.
Jorge dormira muito mal, despertara esgotado, por uma noite
agitada e repleta de pesadelos. Poupo-vos, meus leitores, os detalhes
desses sonhos que nada acrescentariam à realidade dos fatos. Eram
medos e inseguranças, reprimidos e disfarçados desde que conhecera
Carolina, e que agora se faziam presentes nos seus sonhos,
atormentando-o com ameaças e tragédias.
Ele acordara suado e ofegante, ansioso por se aproximar de
Carolina, sem se dar conta de que vivia o epílogo de um sonho, de um
triste e amargurado sonho. Não vos conto o sonho, porém não vos
nego o direito de saber que ele sonhara que Carolina não o amava.
Jorge abriu os olhos e reconheceu o quarto onde vivia. Procurou
relaxar e recuperar o controle dos nervos. As suas mãos tremiam, e o
coração disparado custava a se recuperar. Ele ainda tentou recordar
o sonho, mas logo desistiu, por perceber que estava tomando um
caminho que não o levaria a um final feliz.
A manhã passou sem que ele percebesse, pois tratou de fazer uma
arrumação na loja, mudando peças de lugar e redecorando diversos
ambientes. Assim, era útil como empregado, e prático como
enamorado. O trabalho cura muitos males, mas nenhum outro como o da
ansiedade.
Jorge distraiu-se no trabalho, como já vinha fazendo nos últimos
tempos. Enquanto trabalhava, o tempo passou e ele pouco se deu conta
de que já começara a entardecer. A loja ficou arrumada e pronta
para o dia seguinte ao Natal. Ele é que precisava arrumar-se para a
festa de Carolina.
Escolhido o melhor traje, Jorge tratou de lavar o corpo e a alma,
antes de se vestir. Diante do espelho, gostou do que viu. Respirando
fundo, gostou do que sentiu. Estava pronto!
Um ruído de cascos fez com que Jorge se sobressaltasse, dando um
pulo da cadeira, onde sentara à espera do patrão. Um amplo sorriso
e uma saudação natalina adentraram a loja pelos lábios do Senhor
Ernesto. Abraços e tapinhas nas costas celebraram o encontro dos
dois.
Deram-se os braços e foram em direção ao carro, que os
aguardava com o cocheiro e uma bela moça de sorriso tímido e faces
pálidas. Ele era o empregado já seu conhecido, por trazer e buscar
o patrão na rotina diária. Mas, e ela, quem era ela?
– Sofia,
minha sobrinha, respondeu-lhe o Senhor Ernesto, como se lesse o seu
pensamento.
Jorge estendeu a mão e beijou a ponta dos dedos da moça, com a
mesma suave gentileza que tanto encantara Carolina, quando se
conheceram. A palidez deu lugar a um tom rosado, nas faces de Sofia,
que tentou disfarçar, mas sem êxito.
Jorge sentou-se de um lado e o Senhor Ernesto do outro, ficando
Sofia entre os dois. Toda vez que o carro fazia uma curva um pouco
mais fechada, ela roçava o braço no corpo de Jorge. Logo, ela se
desculpava e se encolhia, mas era estimulada a relaxar, diante do
sorriso franco e amistoso com que Jorge reagia aos seus sentimentos
de culpa.
Conversaram durante a viagem, não somente os dois, mas também o
Senhor Ernesto, que estava muito solto e falastrão. A ausência de
Dona Tereza parecia fazer um bem enorme àquele homem, deixando-o
mais vontade e bem mais autêntico. Era assim que pensava Jorge,
enquanto media e pesava as atitudes e as palavras do patrão.
A proximidade da mansão do Senhor Ernesto já revelava os sinais
da festa, com uma grande movimentação de carros que chegavam vindos
da praia e a caminho do centro de Botafogo. A casa estava engalanada,
à espera da nata da sociedade local. E esta não decepcionaria os
anfitriões, fazendo-se presente em larga escala.
Jorge foi ficando tenso, diante do ambiente festivo que podia
vislumbrar, à medida que o carro se aproximava da casa. O coração
bateu mais forte, assim que pararam e desceram do carro.
Ele estendeu a mão para que Sofia descesse, e gentilmente deu-lhe
o braço. Caminharam juntos e se aproximaram da varanda, onde se
encontrava Carolina. Sofia estava um pouco nervosa, e se agarrava ao
braço de Jorge com mais força do que seria necessário. Carolina
reparou e não gostou de toda aquela proximidade.
Jorge não se deu conta do que estava acontecendo, e sorriu para
ela, esboçando um cumprimento mais formal, quase uma reverência,
numa atitude sutil de gentil bom humor.
Carolina não demonstrou agrado, e fez um gesto cordial, mas
destituído de simpatia ou sensibilidade. Jorge não entendeu o que
se passava, e desejou-lhe felicidades pela data natalícia. O
agradecimento prosseguiu no mesmo tom, seco e pouco cortês.
Carolina virou-se para o rapaz que se mantinha calado, ao seu
lado, e apresentou-o a Jorge, como sendo seu noivo, Henrique. Jorge
sentiu as pernas tremerem, porém mantendo o autocontrole, estendeu a
mão e cumprimentou o rapaz, que parecia tão atordoado quanto ele.
Henrique sempre demonstrara interesse por Carolina, os seus pais
eram amigos e teriam muito gosto na união dos filhos, mas Carolina
jamais dera qualquer sinal favorável a um relacionamento mais íntimo
entre ambos. Agora, ela assumia um noivado que estava muito distante
da realidade, cabendo a ele, por aceitação e atração, aceitar o
rótulo e se calar.
Sofia cumprimentou a prima, pelo aniversário e pelo noivado.
Jorge, recuperando a calma, desejou a Carolina felicidades, e
convidou Sofia para dançar. Não que a música o inspirasse ao
bailado, mas ele precisava sair de perto de Carolina, antes que seu
coração explodisse.
Da varanda, avistava-se o salão, iluminado por lustres de cristal
que transformavam o brilho das velas numa cascata de luz. Alguns
casais dançavam silenciosos, outros conversavam enquanto dançavam e
outros simplesmente observavam e comentavam, vez por outra, sobre um
ou outro par a dançar.
Assim que Jorge e Sofia começaram a dança, muitos pararam de
conversar. Os olhares se voltaram para o par de dançarinos que, com
elegância e graça, cadenciavam seus passos ao sabor dos suaves
compassos extraídos de seus instrumentos, pelos músicos de uma
pequena orquestra de cordas.
Sofia e Jorge se deixaram envolver pela magia do ambiente e pelo
encantamento da música, e atravessaram todo o salão, sem se dar
conta de que estavam sendo o centro das atenções. Nos primeiros
passos, Jorge ainda ficou a remoer na mente o noivado de Carolina. A
delicadeza e a suavidade dos gestos de Sofia, porém, logo desviaram
os seus pensamentos e os trouxeram para a dama com a qual fazia par.
Carolina acompanhava tudo à distância, confusa e furiosa. Ela
não sabia por que razão foi inventar aquela história de noivado, e
não entendia o motivo de Jorge ter chegado de braços dados com a
prima.
O Senhor Ernesto percebendo a contrariedade da filha e
desconfiando do motivo, chegou-se para perto de Carolina, e foi
comentando com uma pretensa naturalidade o pedido de sua irmã de
levar Sofia à festa. Essa irmã era viúva, e não tinha muitos
recursos, dependendo da ajuda do irmão para sustentar a casa. E ele
se sentia responsável por muito mais do que apenas contribuir
financeiramente para o bem-estar da irmã e da sobrinha.
Diante do pedido da irmã, ele pegara Sofia em casa, antes de
passar na loja para trazer Jorge para a festa. E com muito jeito e
diplomacia, o pai foi justificando para a filha a razão de Jorge e
Sofia terem chegado juntos.
A gentileza e a cordialidade entre os dois eram virtudes naturais
de Jorge que, ela Carolina, já tivera oportunidade de usufruir.
Carolina ouvia calada e pensativa. Até que, as lágrimas começaram
a escorrer-lhe nas faces, e ela se lançou nos braços do pai.
Não fosse
estar toda a atenção dos convidados voltada para o casal de
dançarinos, a reação de Carolina poderia ter dado muito que falar.
Nem os convidados, nem Jorge e Sofia, perceberam o choro de Carolina
e o abraço consolador do pai. Nada passou, porém, despercebido a
Henrique, que via, ouvia e pensava, sem nada falar.
CAPÍTULO TREZE
Carolina não se conteve, e chorava no ombro do pai. Ela
confessou-lhe que mentira para Jorge, dizendo-se noiva de Henrique.
Ciúme, somente por ciúme, diante da chegada de Jorge de braço dado
com Sofia.
O Senhor Ernesto tranquilizou-a mais uma vez, atribuindo o ato
afetuoso à amabilidade do rapaz, que era um traço marcante na sua
personalidade. Ele lembrou-a do passeio após a missa, os dois de
braços dados e da forma gentil e cavalheiresca com que ele esticou a
mão para ajudá-la a descer e a subir no carro. Ele sussurrava no
ouvido da filha que, aos poucos, foi-se acalmando e secando as
lágrimas.
O Senhor Ernesto aconselhou-a a se reaproximar do rapaz e deixar
que ele demonstrasse o seu afeto e admiração por ela. O pai vinha
acompanhando o comportamento do jovem, desde que lhe entregara o
convite para a festa, e não tinha dúvida que ele nutria um forte
sentimento pela filha.
O Senhor Ernesto fez ainda mais um pouco, levando Carolina até
junto a Jorge, que, finda a dança, estava só com os olhos no salão
e o pensamento distante. O rapaz estremeceu quando se viu diante de
Carolina, após girar a cabeça em direção à voz do patrão, que o
chamou pelo nome.
O Senhor Ernesto entregou a filha aos cuidados do rapaz, e
pediu-lhe que lhe fizesse companhia enquanto ia a dar um recado para
Dona Tereza. Henrique, à distância, acompanhava todos os movimentos
de Carolina, e suas feições revelavam toda a insatisfação que
trazia na alma.
Uns se alegram para a tristeza de outros. Os tristes lamentam o
momento de dor, os felizes festejam a expectativa do amor. Henrique e
Jorge confrontavam seus sentimentos, alternando-os ao sabor dos
caprichos de Carolina.
Jorge convidou Carolina para dançar, e de mãos dadas deslizaram
pelo salão, consolando as mágoas da moça e alimentando o orgulho
do rapaz. Se ao bailar com Sofia, muitos interromperam a dança para
acompanhá-los, agora, com Carolina, todos se afastaram para apreciar
a leveza e graça do casal.
Carolina ficou corada e sentiu as pernas tremerem, ao notar que
todos os olhares estavam voltados para eles. Com o canto do olho, ela
percebeu que Dona Tereza demonstrava insatisfação enquanto
conversava com o marido. Ela não entendia a razão da restrição
que a mãe fazia à sua aproximação de Jorge, e atribuía essa
insatisfação ao fato do rapaz ser um simples empregado da loja.
Os pensamentos da moça não ficaram presos a esses detalhes por
muito tempo, pois os movimentos da dança foram provocando-lhe uma
incontrolável euforia, levando-a a fixar toda sua atenção e seu
olhar exclusivamente em Jorge.
Ele sorria e demonstrava uma indisfarçável satisfação por
tê-la ao seu lado, e por poder conduzi-la nos braços, enquanto a
música romântica, suavemente marcava o compasso do seu coração.
Os convidados balançavam a cabeça, uns, em sinal de aprovação,
outros, de admiração, e uns poucos, bem poucos, em desaprovação.
Quem era aquele jovem? A maioria dos convidados da festa não o
conhecia. O seu porte nobre e belo impressionava a todos, mais às
mulheres, é justo que se diga. Mas, os homens não encontravam
motivos para desaprová-lo, a não ser pelo fato de desconhecerem
suas origens e a razão para estar entre os convidados.
A música chegou ao fim, os músicos precisavam de um descanso e o
casal de enamorados, de um pouco de privacidade. Jorge convidou-a
para acompanhá-lo até a varanda. E de braços dados, lá foram os
dois, em busca do céu estrelado e da lua crescente, como se não
houvesse mais ninguém com direito a apreciar a noite.
Conversaram, se olhando nos olhos e sorvendo cada palavra com a
emoção de dois apaixonados. Ali ficariam pelo resto da noite e,
quem sabe, pelo resto de suas vidas, se não fossem interrompidos
pela chegada de Dona Tereza. Ela, mal disfarçando a sua desaprovação
àquela intimidade, viera pedir à filha que voltasse ao salão, pois
estavam a dar falta dela.
Carolina desculpou-se com a mãe, e Jorge aproveitou para
gentilmente assumir a culpa de haver retirado a moça do salão. As
desculpas só pioraram o estado de ânimo da mãe da moça, que já
não conseguia disfarçar a sua irritação.
Dona Tereza aproveitou o braço dado com Jorge, que conduzia mãe
e filha de volta ao salão, uma de cada lado, e puxou-o para dançar,
sugerindo que Carolina fizesse o mesmo com Henrique.
Cavalheirescamente, Jorge tomou-a nos braços, e fazendo um gesto
de cabeça, quase imperceptível, como que se desculpou com Carolina,
por ter de se afastar da moça.
Henrique não perdeu tempo e se aproximou de Carolina, que
obedecendo à sugestão da mãe, saiu a dançar com o rapaz, com a
mesma leveza e graça de antes, mas sem o mesmo entusiasmo e prazer
de quando estivera nos braços de Jorge.
Dona Tereza é que não escondia a sua satisfação por se sentir
abraçada a Jorge, ainda que mantida à distância pelo rapaz, que
não estava disposto a dar asas à imaginação da sua dama.
O Senhor Ernesto acompanhara todos os movimentos da esposa, e se
mantinha sério e calado, com o olhar indo e vindo da esposa para a
filha e destas para os semblantes dos dois jovens cavalheiros.
Ele percebera o desconforto de Jorge e a ansiedade de Henrique.
Mas, os dois rapazes não eram o centro das atenções do dono da
casa, senão sua esposa, ofegante e contrariada, e sua filha, triste
e desconsolada.
Dona Tereza não conseguia disfarçar a sua atração por Jorge, e
isso o Senhor Ernesto já pudera observar de outras vezes que
estiveram juntos. As duas taças de champanhe que ela tomara, antes
de se encaminhar à varanda, contribuíram para o seu comportamento
mais impulsivo, e que era preciso ser controlado.
O Senhor Ernesto caminhou em direção ao centro do salão, e com
um sorriso amável pediu a Jorge que lhe concedesse o direito à
próxima dança com a esposa. Jorge quase deu um suspiro de alívio e
Dona Tereza, um berro de raiva.
Jorge aceitou um drinque e ficou a sorvê-lo numa das extremidades
do salão, de onde pôde observar o olhar suplicante de Carolina,
pedindo-lhe que a resgatasse dos braços de Henrique, e as feições
transtornadas de Dona Tereza, enquanto se arrastava zangada nos
braços do marido.
A música cessou de vez, para dar lugar às celebrações em
homenagem à aniversariante. O Senhor Ernesto disse algumas palavras
exaltando a maioridade da filha. Os convivas brindaram pelo futuro de
Carolina e se encaminharam para a ceia, que seria servida no salão
nobre da residência.
Jorge não conseguiu retomar a companhia de Carolina, devido a uma
manobra de Dona Tereza que fez com que a filha formasse par com
Henrique. Sofia estava enturmada com um grupo de jovens convidados, e
não teve dificuldade para encontrar o seu par.
Sozinho e meio desconsolado, Jorge seguiu em direção ao salão
que ficava no fim de um largo e longo corredor. Enquanto caminhava,
ele ia relembrando os acontecimentos, e não conseguia conter a sua
satisfação, pelos momentos passados com Carolina.
O jantar foi servido, com os lugares marcados à mesa, ficando
Jorge bem distante de Carolina. Dona Tereza não estava disposta a
correr riscos de ver sua filha se deixar envolver pela presença
sedutora do jovem, permitindo que se sentassem próximos e
conversassem durante o jantar.
Carolina esticava o olhar, mas não conseguia descobrir Jorge, do
outro lado da mesa e fora do seu campo visual. Jorge se contentava
com a imagem da moça, gravada na memória. Dona Tereza havia
recuperado o controle da situação e ao lado do marido dava as
ordens e se fazia o centro das atenções.
Cercado de desconhecidos, que não se dirigiam a ele, nem em
palavras e nem em olhar, Jorge foi sentindo que não era bem-visto
pelos amigos do patrão. Uns, talvez, já haviam de ter ouvido falar
dele, como o empregado da loja. Outros, nunca nada ouviram dele, e
nem estavam interessados.
O barulho dos talheres no prato se confundia com o mastigar
faminto, e até mal educado de alguns convidados, deixando-o ao mesmo
tempo muito incomodado e constrangido. A conversa era fútil,
falava-se alto, e às vezes ouviam-se gargalhadas estridentes.
Jorge sentiu falta do silêncio e da solidão do seu quarto.
Carolina estava distante dele, e não deveria voltar a se aproximar,
como Dona Tereza deixara bem claro, mantendo-os afastados a partir do
deslocamento para a ceia.
O Senhor Ernesto percebendo o isolamento a que fora condenado
Jorge, dele se aproximou e convidou-o para tomar um licor, servido na
sala ao lado. O rapaz agradeceu, e se disse satisfeito com o que
comera e bebera.
Jorge aproveitou a presença do patrão para alegar cansaço pelo
muito que fizera naquele dia, e necessidade de descansar, pelo tanto
que pretendia realizar no dia seguinte. E de nada adiantou os
reclamos do patrão e as promessas de dispensa do trabalho na manhã
seguinte.
Jorge não estava à vontade, e o Senhor Ernesto já percebera os
incômodos do rapaz. Os dois caminharam juntos em direção a Dona
Tereza, de quem Jorge primeiro se despediu. A seguir, foram até
Carolina, que recebeu com tristeza os cumprimentos de Jorge, e nada
pôde fazer senão retribuí-los com um sorriso desconsolado, que
marcou o seu final de festa.
Jorge, acompanhado do patrão, foi até o tílburi que o
conduziria de volta à loja, onde lá nos fundos, silencioso e
solitário, estava o seu quarto a esperar por ele. O barulho da festa
que vinha de dentro da casa, deixou-o triste e incomodado. Ele saía
da festa levando consigo muito menos do que sonhara, e teria pela
frente uma noite bem mais longa do que desejaria ter.
Enquanto o carro rompia a noite com o barulho de cascos ressoando
pelas ruas desertas, Jorge ia encolhido no banco, contrariado,
entristecido e magoado.
Os ressentimentos corroíam a sua alma, provocando-lhe um
sentimento de humilhação que jamais sentira antes. Ele nunca fora
discriminado como naquela noite, que começara promissora, mas
terminara com um inegável sabor de fracasso.
Jorge ia amargando suas mágoas e ressentimentos, contra tudo e
contra todos. No início, ele isentara Carolina de culpas. Mas, com o
passar do tempo e com a raiva se misturando com o sentimento de
desprezo que sentia na alma, Jorge não poupou ninguém das culpas e
da condenação. Até o patrão que nada fez que justificasse
cumplicidades com o crime praticado, entrou na sentença final.
Jorge recolheu-se aquela noite, com um sentimento de frustração
indescritível, e com uma saudade enorme de sua outra vida. Antes de
dormir, pensou em Lúcia, e sentiu falta dela. Lembrou-se da sua loja
de antiguidades, e teve uma vontade incontrolável de voltar a ela, e
de ser dono do seu próprio negócio.
Quando o sono chegou, veio encontrá-lo a repetir para si – “eu
não preciso passar por isso”.
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