À MARGEM DO TEMPO - CAPÍTULOS 7 E 8

Capítulo SETE


Jorge abriu os olhos, espreguiçou-se, pôs as mãos debaixo da cabeça e fixou o olhar no teto.
Havia uma semana que ele estava morando no quartinho nos fundos da loja. Parecia um século ou mais.
Esta reflexão causou-lhe um imediato e incontrolável arrepio. Toda vez que ele se via diante de pensamentos sobre o passar do tempo, sentia um incômodo estranho que não sabia explicar.
A verdade é que, à medida que se afastava daquela manhã em que transpusera um portal do tempo, procurara não pensar muito naquela viagem misteriosa.
Com a mudança de casa, tratou de mudar também os seus ideais de vida, passando a projetar um futuro nunca antes sonhado.
Um sorriso aflorou-lhe os lábios. Ele estava com o olhar fixo num ponto de poeira que flutuava junto ao teto, iluminado pela luz do sol que penetrava por uma fresta da janela.
Quem já não se distraiu com aquelas poeirinhas? Aquelas mesmas que, ao atravessar a faixa iluminada do cômodo, surgem do nada, para desaparecer na penumbra, logo a seguir.
Jorge pôs-se a vagar pelo quarto junto a uma leve poeira. Ela parecia satisfeita, aquecendo-se sossegada num canto da faixa de luz. Ele sentiu-se solidário àquela atitude poeirenta, e deixou-se ficar com ela, como se pó já fosse.
Ele não entendia o motivo das outras partículas de pó atravessarem o quarto bem à sua frente, enquanto aquela poeirinha solitária se aquietava no ar, satisfeita com a sua inércia.
Jorge sentiu-se feliz por concluir que ser pó não era tão mau assim. Pelo menos enquanto aquecido e iluminado pela luz do sol. Quem sabe o quanto não teria viajado aquele pozinho, antes de chegar ali!
Uma súbita interrupção do raio de luz fez Jorge perder de vista, a poeirinha feliz. Talvez uma nuvem, ou o balançar de um galho de árvore, não importa a razão, a verdade é que ele perdera definitivamente o contato com aquela peregrina poeira.
Ele não pôde deixar de se imaginar, como um aglomerado desse pó flutuante, vagando pelo espaço através do tempo. Até que, um dia, todos se juntaram para formar aquele homem que era ele, e mais tarde iriam separar-se e nunca mais se reencontrar.
A reflexão era mórbida demais para quem se sentia tão feliz. Ele tratou de espanar aquelas ideias da cabeça, e pôs novamente os pés no chão.
O quarto possuía uma prateleira ao lado da cama, onde se alinhavam inúmeros livros e catálogos estrangeiros, que tratavam de obras de arte e móveis. Jorge vinha devorando-os, não importando em que idiomas fossem escritos, inglês, francês, alemão ou que outro houvesse.
Aquela sua capacidade intelectual para decifrar todos esses idiomas, ele não saberia explicar, e nem tentava, até porque guardava só para si mais esse mistério.
Atrás da cama, mais para o teto do que para o chão, ficava uma pequena janela, através da qual, de pé sobre o colchão, ele conseguia avistar ao longe as montanhas da Tijuca.
Jorge apreciava aquela vista, encantado com o azul do céu. Se o céu não estivesse azul, não importava, pois ainda assim tudo na vida dele estava colorido de azul. Vendo as montanhas ao longe, ele repousava os seus pensamentos sobre a paisagem refletida na sua mente, levando-o a recordar do bairro onde havia morado.
Neste instante, veio à sua memória a duplicidade das épocas. Ele morando no Andaraí, tanto na noite de 2009, como na manhã de 1869. A sua nostalgia, por essa razão, era dupla. Ele relembrava o que vivera no futuro, numa época da qual trazia lembranças esparsas e nem sempre muito nítidas.
Jorge ia, aos poucos, recolhendo na memória os retalhos necessários para tecer uma colcha de recordações, que se não era perfeita, não deixava de servir aos seus propósitos.
Quando as lembranças mais recentes começaram a encontrar certas resistências para aflorar à sua mente, Jorge viajou no tempo, e desembarcou seus pensamentos em pleno século XX.
Lembrou-se da sua loja de antiguidades, no bairro de Ipanema. Lá, ele negociava peças raras, possuindo uma clientela seleta, que buscava na loja objetos exóticos, clássicos, caros, alguns muito caros. Clientes e peças negociadas fundiam-se e confundiam-se em tendências e gostos.
Jorge era conceituado estudioso e profundo conhecedor do mercado de objetos antigos. Na sua loja, circulavam o que de mais valioso havia nesse mercado – mercadorias e mercadores, historiadores e pesquisadores, curiosos e compradores.
Em suas prateleiras, repousava uma vasta literatura sobre antiguidades, filosofia do comércio de objetos raros, psicologia humana, estratégias políticas, espiritualidade e religião. Ele era um eclético, não seguia uma linha de pensamento, mas o que de melhor conseguia extrair de cada uma das teorias que tomava conhecimento em suas peregrinações literárias.
Dentre os seus inúmeros clientes que também eram tidos como amigos, Jorge sentia uma especial atração por um deles, o mais fiel comprador, milionário por herança e gastador por compulsão. Simpático, e esbanjando uma ridícula imponência no modo de falar e de andar, há anos que ele tentava liquidar com a imensa fortuna que um tio lhe deixara, sem alcançar nenhum êxito em suas investidas consumistas.
Jorge nunca conseguira entender o motivo que levara o seu esnobe cliente a cultivar uma obsessiva adoração pelas esquerdas e, em especial, pelo Partido dos Trabalhadores. Havia de ser algum trauma de infância ou frustração de adulto. Não importava a razão, o Doutor Celso era um petista fanático, esquerdista convicto, quase comunista.
Ele explicava o quase, com uma reflexão nacionalista, por julgar as imagens de foice e martelo estranhas ao povo brasileiro. Ele preferia a pá e a enxada. Argumento meio desconexo, para a política, mas muito digno para os princípios morais do Doutor Celso.
O homem era proprietário de diversas fazendas, inúmeras mansões, algumas no exterior, mas defendia ardentemente a distribuição de riquezas e a reforma agrária, apoiando o movimento dos sem-terra e a luta pela igualdade dos direitos humanos. A primeira, indispensável para o aproveitamento das terras improdutivas. A outra, por mera questão de justiça social.
Quem o ouvisse, esbravejando em seus inflamados discursos, colocar-se-ia ao seu lado e seria capaz de segui-lo, quando ele invocava as forças populares para impor uma nova ordem social. Os incautos e crédulos ouvintes perderiam o seu tempo, mas ganhariam um amigo.
O Doutor Celso era aquela figura rara, agradável e bem-falante, bom de discurso e aparentemente convicto da sua fala. Mas, suas ideias batiam de frente com a sua própria vida.
Ao ouvi-lo defender a revolução dos homens do campo e a imediata implantação da reforma agrária, logo após haver enumerado todos os problemas que vinha enfrentando para a colheita da soja aqui, da laranja ali e do café não se sabe onde, não sabia o que fazer, se engolia a sua estupefação ou se caía a dar gargalhadas.
E que não se pense que ele tinha consciência da figura paradoxal que havia se tornado, para os que o ouviam. Ele expressava as suas ideias com uma seriedade quase ingênua, que seria cínica para quem não o conhecesse.
O homem comprava somente as peças mais caras, mas de gosto duvidoso. A beleza, na visão dele, era medida pelo preço do objeto. Quanto mais caro, mais bonito. Quanto mais belo, mais ele encarecia o valor da peça, por conta própria, só para justificar a sua tese.
E dizer que o Doutor Celso se dizia de esquerda, um quase comunista! E como ele, tantos ricos, estudantes e intelectuais, repetem o mesmo discurso. Sem a mesma fortuna, é verdade, mas justiça lhe seja feita, sem a mesma leveza e graça.
Na memória de Jorge, desfilavam os seus antigos clientes. Ou seriam os futuros? Ele preferiu não entrar no mérito da questão. O tempo sempre o incomodava, quando era chamado a definir épocas, como antes e depois.
Lembrou-se, de repente, do General Mendonça, defensor de uma nova ditadura, desta feita mais séria e rigorosa, para consertar o que a outra estragara. Enquanto ele ia comprando as peças de arte, quase todas elas relacionadas a armas e artefatos militares, ia destilando o seu rancor às esquerdas, aos excessos de liberdade, e quase sufocava de ódio, quando mencionava o comunismo, que ele juntava num pacote só, ao socialismo, trabalhismo e petismo. Jorge refletiu que para sorte sua e por providência divina, o Doutor Celso e o General Mendonça jamais se encontraram em sua loja.
E a Dona Elza, com o seu racismo e preconceito social! Nem uma jarra, nem um armário, nada do que ela comprasse poderia ser negro. A cor negra dava-lhe arrepio. Ela tinha pavor de ser assaltada, menos pelo que ia perder, e mais pela possibilidade de que iria tudo para as mãos de um negro. Ela não conseguia conceber um ladrão de outra cor.
Um dia, já idosa, ela casou-se pela segunda vez, com um jovem louro, de pele clara, feições finas e muito educado e que, em pouco tempo, deixou-a com menos da metade da sua fortuna. O louro, por fim, fugiu com suas joias e em seu avião particular, levando consigo uma sobrinha da Dona Elza, que ela cuidava como filha.
Na falta de um negro para acusar, ela justificou o fato como alguma magia negra, que haviam feito contra ela, por inveja, ao se casar com um homem jovem, louro e bonito. Ela era, apesar de tudo, uma boa cliente.
As recordações fizeram Jorge viajar no tempo, até eras distantes, de onde ele retornava aos poucos, à medida que ruídos e movimentos, no interior da loja, despertavam os seus sentidos.
Era um domingo, a loja estava fechada para a freguesia. Ele deduziu que só poderia ser o Senhor Ernesto que, por alguma razão muita séria, resolvera quebrar uma tradição antiga, de nunca comparecer ao local de trabalho em domingos e feriados.
Jorge ficou de ouvido atento aos sons que chegavam até o seu quarto. Arrumou-se apressadamente e, ao se dar conta de que estava pronto para sair do quarto, ouviu baterem à sua porta. E, logo a seguir, ouviu a voz do Senhor Ernesto:
-Sou eu, Jorge. Apronte-se que iremos à missa juntos.
Jorge custou a entender o sentido daquelas palavras. Mas, a sua intuição falou mais alto. Ele percebeu que naquele convite havia a assinatura de Dona Tereza. E não querendo decepcionar o patrão, e menos ainda a esposa do patrão, Jorge enfatiotou-se com todo o requinte que a sua condição permitia, e ao abrir a porta foi recebido por uma exclamação de surpresa do patrão:
Ora vivas, não é que tens talento para outras artes, que não só o trabalho!
Jorge corou, gostou do elogio, envaideceu-se. Esperava um elogio, vindo de quem ele queria impressionar mais do que ao patrão, mas ela não estava presente. Assim, foi melhor a emenda do que o soneto, contrariando o ditado.
A surpresa do convite, porém, superou todas as expectativas, e deu à emenda esse conceito compensador, na ausência do soneto. Mas, os sonetos o esperavam do lado de fora. Mais poesia, impossível. Mais sonetos, dispensável. Emendas, sim muitas, as boas e as más, até se encontrar as melhores. Urge emendar o mundo, para que se possa medir a emoção que tomou conta de Jorge, ao pisar fora da loja. Aliás, as emoções, pois foram duas.
Jorge avistou, não uma, mas duas poéticas surpresas. Sentadas no carro, aguardando-o, estavam Dona Tereza e sua filha Carolina. Jorge não ia somente à missa, ele estava a caminho do céu.


CAPÍTULO OITO
A igreja era a do Carmo, como poderia ser a da Ajuda, a da Glória ou outra qualquer que pudesse testemunhar e abençoar sua devoção a uma nova santa, recentemente beatificada.
O amor instalou-se na alma do rapaz, no primeiro instante que pousara os olhos sobre a filha do patrão. Sentada ao lado da mãe, na caleche que os levou ao Carmo, Carolina sem dar uma palavra seduziu Jorge, que mal conseguia disfarçar o olhar que teimava em repousar sobre a face rosada da moça. O olhar sereno e manso da moça contrastava com a face contraída e tensa da mãe, que davam a dona Tereza uma permanente expressão de dominação e poder.
Embora todos esses sentimentos provocassem séria agitação no íntimo de Jorge, ele soube disfarçá-los, desde que as avistou, dirigindo-se às damas com gentil naturalidade e uma discreta saudação digna de um nobre cavalheiro. A nobreza revelada na saudação impressionou e surpreendeu o patrão.
Justo há de ser, explicar-se a surpresa do Senhor Ernesto. Não que ele julgasse mal o jovem, mas a sua condição humilde, de empregado em sua loja, não lhe permitia supor tamanha nobreza e refinamento de gestos.
Dona Tereza sorriu com os olhos, bem ao seu feitio, enquanto os lábios finos e colados um no outro confirmavam o seu caráter forte e dominador. Carolina sorriu com os lábios, mostrando dentes alvos e brilhantes.
A moça ofereceu-se à contemplação do rapaz, como uma santa viva, contrastando com as imagens que se encontram nas igrejas. Os seus olhos eram castanhos, mais para claros, e o nariz ocupava suavemente o espaço entre os olhos e os lábios. Os cabelos escuros vinham repuxados até a nuca, de onde despencavam encaracolados sobre os ombros. A pele clara contrastava com os cabelos negros.
Deixemos por conta da visão de Jorge, o que ainda falta descrever da figura da moça. Ele haverá de pintá-la em sua mente em tons suaves e traços finos, se não exatos como a vida a fizera, nem por isto distante da bela realidade.
Durante o trajeto, sentado ao lado do Senhor Ernesto, os olhos de Jorge procuravam sutilmente os de Carolina. Encontrava-os fingidamente distantes. Se os olhos não permaneciam, por todo tempo, presos no seu rosto, os pensamentos não conseguiam estar noutro lugar.
Jorge mal conseguia disfarçar o seu encantamento pela filha do patrão. Carolina percebera o seu interesse e ficara lisonjeada. Dona Tereza acompanhava os sentimentos e os pensamentos dos enamorados, mas não demonstrava qualquer satisfação com o que via.
Relaxado e alheio a tudo, o Senhor Ernesto fazia comentários banais sobre a beleza da manhã de domingo, as bodas do casal amigo, os magníficos animais que puxavam o trote através de ruas quase desertas. Enfim, nada do que dizia era digno de constar nalgum registro para futuras consultas. Não passava de conversa jogada fora.
Chegados à igreja, Jorge confirmou a impressão do patrão, e com atitudes de nobre cavalheirismo ofereceu a mão às damas, e deu o braço ao Senhor Ernesto. Numa outra pessoa, isso pareceria um ato de abusiva intimidade, mas nele tinha ares de cuidados e respeito, causando reações de admiração e respeito, em todos que foram alvos de suas gentilezas.
Depois do desembarque, Jorge ofereceu o braço a Carolina, caminhando em direção à igreja, seguidos de perto pelo Senhor Ernesto e Dona Tereza. Alguns convidados, à porta da igreja, cochicharam entre si, quando Jorge e Carolina passaram diante deles, cumprimentando-os com um discreto movimento da cabeça e tímidos sorrisos, nos lábios e nos olhares.
Neste momento, o Senhor Ernesto, percebendo os cochichos e olhares indiscretos, pensou no silêncio da sua mente que os dois formavam um lindo casal. Esta percepção não lhe desagradou, antes lhe causou certa satisfação, se bem que sem maiores consequências.
Adorava a filha, e tudo que se prestasse a honrarias dirigidas a ela caía-lhe no agrado. Jorge se prestava a um mero instrumento de felicidade da filha.
A missa, como já mencionamos, era de bodas de um casal amigo da família do Senhor Ernesto. A missa era cantada e a nave se fazia encantada pela beleza do ato. Jorge não via essas graças religiosas, suas vistas estavam em busca de graças outras, derramadas pelo olhar de Carolina.
A missa foi majestosa, os cantos não poderiam ser mais imponentes e o sermão do Senhor Bispo deu, ao ato solene, um requinte divino àquele momento.
Se perguntado sobre a bela cerimônia, Jorge nada teria a falar. Durante a cerimônia, a sua oração estava dirigida para outro altar, ocupado por uma santa a que se convertera há poucos momentos e à qual dedicava toda a fé.
Uma hora ou pouco mais foi o tempo que durou a celebração, e, neste período, Jorge subiu aos céus e desceu a terra, por diversas vezes. E, nessas idas e vindas, Carolina fazia-lhe companhia. Ele ajoelhou-se aos seus pés e adorou-a com toda devoção.
Os cânticos da missa penetravam em seus ouvidos. Eram vozes angelicais que acompanhavam a santa e o devoto em peregrinações pelos reinos dos céus.
Jorge espichava o olhar e de canto de olho tentava alcançar o semblante de Carolina que, ao seu lado, rígida e contrita, não desgrudava a vista do altar.
Por alguns momentos, Jorge imaginava haver percebido o olhar da santa dirigido a ele. Logo se convencia ser mera imaginação, como aqueles falsos milagres atribuídos às santas que responderiam aos devotos com um sinal de que estão sendo ouvidos.
Carolina acompanhava a missa com um olho no altar e outro no devoto. No altar, fixava os olhos físicos, no devoto, repousava o seu olhar espiritual. Se não chegava aos céus, como Jorge, andava lá pelas nuvens, meio-termo ideal para quem nem se julgava santa, nem via Jorge como um devoto.
Carolina tinha um pretendente, cuja corte não lhe era do desagrado, mas experimentara com a atenção de Jorge uma emoção nova e prazerosa.
Terminada a missa, ambos desceram das alturas. Jorge fizera o caminho de volta com mais sacrifício do que Carolina, que aproveitando uma lufada de vento sobre as suas nuvens, tocara o chão, serena e suavemente.
Os convites para as bodas mencionavam uma recepção para os mais íntimos. A família do Senhor Ernesto fora incluída entre os poucos que haviam sido distinguidos com essa consideração.
Enquanto aguardavam a recepção, saíram a passear. O convite partira do Senhor Ernesto, sem as bênçãos de Dona Tereza que não estava lá num dos seus melhores dias.
No melhor estilo de uma família abastada e feliz, com os casais de braços dados, desceram a Rua Direita e, por sugestão de Carolina, tomaram a direção do Carceler. O Boulevard foi percorrido em alto estilo, com Carolina descontraída, apontando para uma e outra vitrine, enquanto sorria para Jorge.
Jorge mantinha uma postura firme e segura, contrastando com o seu estado de espírito, tenso e ansioso. Gentil e amoroso, respondendo às observações ingênuas de Carolina com sorrisos e galanteios, Jorge fazia a moça suspirar e se esquecer do pretendente, em quem pensara ao sair da igreja.
Quem os visse, diria estarem apaixonados. Dona Tereza os via, e não gostava do que via. Não por querer mal à filha, mas por sentir um pouco além de simpatia pelo rapaz.
O Senhor Ernesto, desconhecendo as reflexões da mulher, respirava prazerosamente os ares da manhã, feliz pela felicidade da filha, encantado pelas atenções de Jorge.
Ele resolveu seguir a mulher em suas reflexões, só que enveredando por outros caminhos. Olhava para Jorge e não o via como um empregado, mas como um discípulo da ciência das artes, de quem ele era o mestre. Chegou a pensar nele como um filho, mas achou precipitado, um exagero para um tempo curto de convívio e relacionamento.
Naquele domingo, Jorge crescia no conceito do patrão. Seus gestos, suas palavras, seu porte, seu ar de dignidade, sua forma de andar, tudo o impressionara, desde os primeiros instantes da manhã.
Do passeio para a recepção das bodas, e daí de volta para casa, o tempo se arrastou para uns, e voou para outros. Ou melhor, somente para Dona Tereza o tempo parecia não passar.
Chegado o momento da despedida, Carolina e Jorge, mais pelo olhar do que pelas palavras, confessaram o prazer que sentiram por desfrutar um da companhia do outro. Soltaram-se os braços, os corações permaneceram unidos.
O Senhor Ernesto deixou Jorge em casa, ou na loja, o que dava no mesmo.
Anoitecia, quando os cavalos, num trote suave e nostálgico, afastaram Carolina de Jorge, deixando o moço triste e solitário. Na solidão do quarto, ele recordou cada momento vivido naquele dia de domingo. Era dezembro, o ano, 1869. O dia, pouco importa, como nada mais importa, depois de tudo que se passou.
Jorge custou a pegar no sono, o que só veio a acontecer nas primeiras horas da madrugada. A emoção que sentia não o deixava relaxar, e, diante disso, decidiu aproveitar a vigília para realizar uma nova viagem no tempo. A sua nave do tempo aterrissou no ano de 1969, cem anos depois.
Jorge se viu na porta da igreja de Santo Afonso, na Tijuca. O dia era oito de dezembro, e ele acabara de assistir a missa pelo dia de Nossa Senhora da Conceição.
Na saída da missa, um amigo apresentou-lhe Lúcia, que lembrava Carolina, menos pelas feições, mais pela emoção que sentiu em ambas as ocasiões.
Ele amou Lúcia por dez anos, até ela o abandonar. Deixou-o para ir viver com um grande amigo seu. Sem explicações, sem ressentimentos, sem nada além de uma simples e lacônica afirmação – ACABOU.
Tristes recordações, após um dia de suprema felicidade. Nada mais inconveniente para aquele fim de noite.
Ele se via perdido numa estação de trem, onde a placa indicava CAROLINA. Ele não entendeu como havia chegado por aquelas paragens. Era ali que ele sonhava viver. O lugar era silencioso, cercado de montanhas e com um campo florido nas áreas mais próximas.
É melhor pararmos por aqui, a realidade já ficou para trás, Jorge sonhava. Ele sonhava o sonho dos amantes, a eterna fuga de quem busca nos sonhos a solução mais simplória para os seus eternos problemas de amor.
Nos olhos de Carolina ou nos braços de Lúcia, Jorge mergulhou no sono, indiferente a tempo e espaço. Ambas eram amadas, por ambas, sofria. Se bem que, as razões não sendo as mesmas, também diferiam os sofrimentos.
O sono não foi tranquilo, alternando delírios e fantasias, sonhos e pesadelos. No meio de um desses pesadelos, havia tornado, não mais a 1969, mas a 1989. Lúcia pedia-lhe perdão, por tê-lo abandonado, abraçando-o e beijando-o. De repente, chegou Carolina, que ao vê-los, um nos braços do outro, solta um grito e desmaia. Ele afasta Lúcia dos seus braços e corre em direção à jovem Carolina. Ao se abaixar para cuidá-la, ela desaparece. Ele se volta para Lúcia, que vai afastando-se e desaparecendo no meio da fumaça. Ele se sente solitário e preso de uma enorme angústia.
Jorge acorda suado e respirando ofegante. Ele suspira aliviado, era somente um sonho.

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