À MARGEM DO TEMPO - CAPÍTULOS 3 E 4
Capítulo TRÊS
O dia seguinte chegou. Ele não trazia nem a marca da desgraça e
da destruição, de alguma pressuposta tragédia de véspera, nem os
resquícios de um insólito conflito temporal. O dia chegou à
consciência de Jorge, mansamente, sem temores, nem cobranças.
Jorge despertou para a vida, egresso de um sono profundo que lhe
restituíra as forças desgastadas no dia anterior. Ele retomava o
fio da meada da sua vida, unindo com uma inusitada naturalidade, a
realidade presente e os tempos passados há mais de cem anos.
Jorge espreguiçou-se e rastreou a mente, buscando localizar algum
tempo diferente daquele em que fora dormir na véspera. Ontem, era 17
de novembro de 1869, e com esta data na cabeça, ele deu um salto e
abriu a porta do guarda-roupa. Lá estava a folhinha, marcando o mês
de novembro de 1869. O dia 17 estava marcado com um xis, cuidado que
ele tomara à noite antes de deitar. Se ontem fora 17, hoje seria dia
18, e assim o tempo não voltara a dar um novo salto louco em busca
do desconhecido.
Essa sensação passou-lhe segurança, para que ousasse mergulhar
no tempo, e relembrar o que se passara na manhã do dia anterior. Ele
lançou a memória mais para trás, até um passado distante, que por
mais estranho que fosse, era um tempo futuro, e não passado.
Ele passava em revista o futuro, assim como se costuma fazer com o
passado. Atirava os pensamentos lá para trás, e se sentia lá
adiante. Estranhamente, isso não lhe provocava qualquer emoção
maior do que a simples necessidade de entender os fatos.
O ano era 2009. Ele vivia uma vida solitária, naquele casarão de
muitos quartos. Corrigiu-se, da ideia de solidão, pois viviam
debaixo do mesmo teto a governanta Francisca e o jardineiro Tião.
Ela, uma dedicada servidora da família, desde a época dos seus
pais. Francisca já devia ter passado dos 60 anos, mas tinha uma
disposição de fazer inveja. Tião era um homem humilde que amava as
plantas e que cuidava com absoluto zelo de um canteiro com ervas, no
qual somente ele punha a mão. O seu jeito filosófico de encarar a
vida, repleto de sábias citações, apesar de sua quase nenhuma
instrução, tornava-o uma figura mítica, muito citada por seus pais
nas reuniões domingueiras com parentes e amigos. Tião nunca
revelara a sua idade, mas supunha-se que já fazia algum tempo que
ele entrara na casa dos 70.
Jorge ia recordando as figuras dos dois empregados como se
folheasse um álbum de família. Francisca e Tião ocupavam todos os
espaços da primeira folha.
Virando a folha, deparou-se consigo, com 56 anos de vida, uma
aparência forte e saudável, e ao que tudo indica de bem com a vida.
Jorge teria tido diversos motivos para maldizer a sua existência.
Não o fizera antes, nunca se dispôs a fazê-lo com o passar do
tempo. Amoldou-se a tudo, como se fosse um mero coadjuvante do teatro
da vida. Esforçava-se para ser o melhor de todos, mas nunca sonhara
com o estrelato.
O pai insistiu que se dedicasse às leis, e ele formou-se em
Direito, sem vocação, nem emoção. Tratara cada ano da faculdade
com a frieza de um carrasco diante da sua vítima. Estudara o
suficiente para o diploma, mas não para exercer a profissão.
O pai, um comerciante de antiguidades, sonhava com um título para
o filho. No dia da sua formatura, os olhos do pai brilhavam ao vê-lo
receber o diploma. O seu nome fora chamado com toda a pompa e
circunstância, deixando o velho completamente fora de si de
entusiasmo e orgulho.
A emoção do pai contrastava com a indiferença do filho. Os
planos para uma brilhante carreira formavam-se na mente do pai e se
dissipavam na do filho.
Jorge desprezou a carreira como desprezara os estudos. Sonhava com
o comércio, que o pai desdenhava. Seu pai desprezava o comércio das
artes com a mesma intensidade com que Jorge detestava a carreira que
lhe fora imposta.
Foram tantas as decepções com o filho, por absoluta
incompatibilidade de gênios, que o velho não resistiu mais do que
um ano após a formatura do filho. Sem a mulher que falecera um mês
antes de Jorge se formar, o velho perdeu a sua mediadora junto ao
filho, o que tornou o diálogo insustentável.
Jorge herdou a loja de antiguidades, e com ela pôde celebrar a
grande união do talento com a ocasião.
Deitado de barriga para cima, com o olhar vagando pelo teto do
quarto, Jorge passava em revista toda a sua vida. Ele mirava o
passado com um olhar no futuro. Esse passado projetava-se 140 anos
adiante. Ele vivendo em 1869, e recordando a sua vida em 2009.
Jorge não permitia que os fatos de uma época futura viessem a
causar-lhe qualquer dano emocional. Aceitava-os, analisava-os e
separava-os de acordo com o tempo em que os fatos se passavam. Um
cientista não faria melhor, através da lente de um microscópio,
identificando e separando minúsculas bactérias, que pudessem
responder a dúvidas seculares sobre a vida e a morte.
As rédeas soltas do pensamento disparavam em lembranças pelos
campos da vida e faziam surgir os contornos de uma bela mulher, de
olhar manso e sorriso santo. Antes que chegasse a ela, o seu fogoso
corcel tropeçou nas batidas da porta e na voz do amigo, convocando-o
para mais um dia de trabalho.
– Vamos
embora, Jorge, pois já estamos atrasados!
– Fique
calmo, Davi, chegaremos a tempo, respondeu Jorge, enquanto abria a
porta para o amigo.
Água no rosto, roupa no corpo, algo no estômago e lá estava
Jorge, sem tramas nem traumas, pronto para viver mais um dia da sua
juventude.
As imagens que pairaram em sua mente, quando deitado, foram
afugentadas com a abrupta chegada do amigo Davi. Davi trazia consigo
a marca dum outro tempo, que não se amoldava aos pensamentos que
faziam companhia a Jorge, quando solitário.
Jorge decidiu atender os ansiosos chamados do amigo que jurava
que, desta vez, chegariam atrasados. Jorge, então, trancou as
reflexões na mente e a porta da frente. Assim, impedia as invasões
dos estranhos.
Aproveitava para também deixar trancados os dois tempos distintos
em que estava vivendo, que ele preferia resguardá-los em casa, para
na volta prosseguir tentando entendê-los.
Jorge se deixava levar pelo amigo, que sinalizava nervoso para os
carros que passavam em busca daquele que os levaria até a Rua do
Lavradio.
Era 18 de novembro do ano de 1869, o segundo dia de trabalho para
Jorge e seu amigo Davi, na loja de antiguidades do Senhor Frade.
Capítulo QUATRO
Demonstrando impaciência, postado à porta da loja, esperava-os o
patrão.
Na mente, o Senhor Ernesto Frade se punha a imaginar os dois
aprendizes desincumbindo-se de suas missões com garbo e eficiência,
como perfeitos homens de comércio. Era assim que o Senhor Frade
julgava os novos empregados, dois aprendizes do comércio, tomando
para si a nobre função de mestre das artes.
Não imaginemos que os nossos inexperientes rapazes fossem tão
ansiosamente aguardados por conta de valores que eles ainda não
possuíam. Os motivos eram outros, um compromisso inadiável, marcado
para aquela manhã, bem cedo, e que deixava o Senhor Frade ansioso.
A chegada de Jorge e Davi foi recebida com um indisfarçável
alívio. Os dois foram conduzidos com muita amabilidade para o
interior da loja, onde as instruções e recomendações foram
transmitidas com ordem e método, para que nada desse errado, na
ausência do patrão.
Jorge embebia-se nos ensinamentos, agindo como um ébrio, de um
lado para outro da loja. Davi, pelo contrário, esforçava-se para
manter a sua atenção no que ouvia. E, por não conseguir,
deixava-se levar, ausente e reticente, tropeçando o seu olhar nos
móveis e quadros do caminho.
O olhar de Davi, de repente, reequilibrou-se diante do mesmo
quadro da bela mulher, que já chamara a sua atenção desde a
véspera. Verdade é que, mais do que a atenção, o quadro
despertara a sua atração.
A beleza da senhora do quadro tomou conta dos pensamentos de Davi,
enquanto os de Jorge estavam presos às ordens que recebia do dono do
quadro.
Entre o retrato e o dono do retrato, criou-se uma distância
enorme, que poderia ser medida, naquele instante, através dos
pensamentos de Davi e de Jorge. Jorge só tinha olhos para o dono da
loja e para a cultura que ele expressava em palavras, no meio
daqueles móveis e das belas obras de arte. Os olhos de Davi iam do
quadro para o dono do quadro, e não continham a inveja daquela que,
para ele, era a única, e cobiçada, obra de arte que conseguia
enxergar, no meio daquelas tranqueiras de móveis pelo caminho.
Como se a pintura ganhasse vida e se sentisse atraída pelos
pensamentos de Davi, a figura abandonou a moldura e veio se juntar ao
grupo. Davi, por se sentir culpado por aquela fuga, da imagem
deixando a moldura, abaixou os olhos, e fixou-os no bico dos sapatos.
O Senhor Ernesto logo tratou de apresentar a esposa, com o orgulho
de quem exibe um troféu, conquistado por mérito e com louvor. Ela
gostava de se sentir admirada pelo marido. Mais do que amor, ela
sempre cultivou a admiração dos homens. Talvez adoração fosse a
palavra certa. Era isso que lhe dava prazer, e era isso que ela
estava sentindo naquele momento.
A senhora estendeu a mão e ambos a tocaram levemente num gesto
cortês e acanhado. Davi não conseguia esconder o seu incômodo,
temeroso de que pudessem adivinhar o que estava por trás dos seus
pensamentos, nos instantes que antecederam aquela triunfal aparição.
Jorge não pôde evitar um sentimento de atração. Ela sorrira,
para ele, de um modo malicioso, onde os olhos fazem às vezes de
lábios, e prometem intimidades e cumplicidades, quando as palavras
se fariam inconvenientes.
Jorge sentiu um estranho tremor, mas conseguiu controlar-se,
desviando o olhar das promessas e voltando-o para a razão.
O Senhor Ernesto sorriu para os dois novos empregados, passou-lhes
a responsabilidade pela loja, uma de suas relíquias, e saiu com a
outra relíquia, de braço dado.
O patrão simpatizara com aquele jovem. Ele possuía um brilho no
olhar que parecia antever o futuro homem de sucesso nos negócios.
Desde os primeiros apertos de mãos, Jorge causara uma profunda
impressão no Senhor Ernesto, o que foi crescendo à medida que
conversavam e trocavam ideias sobre artes e negócios.
O negociante via naquele empregado algo mais do que um simples
aprendiz. Havia nele uma sabedoria natural e espontânea, como se ele
já soubesse de tudo aquilo que lhe estava sendo ensinado.
No dia anterior, ele ouvira e questionara cada informação que
lhe fora passada. E naqueles rápidos minutos da manhã, parecia já
saber de tudo, como se os ensinamentos da véspera despertassem nele
experiências já vividas e sobre as quais ele tivesse o mais
absoluto e minucioso conhecimento.
A mesma impressão não lhe causara Davi. Desatento,
desinteressado, imaturo, esses eram alguns dos adjetivos com que fora
distinguido o filho do seu grande amigo, enquanto sua mente refletia
e caminhava. Era uma pena que aquele a quem mais gostaria de poder
ajudar fosse tão desprovido de interesse, e certamente de talento,
para os negócios e para o trato com a arte e a cultura. A amizade
não poderia influir no seu julgamento, e disso ele jamais abriria
mão.
Caminhando ao seu lado, Dona Tereza também ia fazendo as suas
comparações sobre os dois jovens, e tirando as suas conclusões.
Naturalmente, não será necessário comentar que os valores que
inspiravam os julgamentos da esposa, estavam muito distantes daqueles
que eram usados pelo marido. Estranhamente, porém, por caminhos
distintos, ambos acabavam chegando às mesmas conclusões.
Caminhos confusos, esses percorridos pelos pensamentos humanos.
Saem juntos, afastam-se por incompatibilidades e se reencontram ao
final da jornada. Os meios e as formas pouco influem desde que
atinjam os seus fins.
Se o marido soubesse dos critérios adotados no julgamento da
esposa, seguramente teria, senão mudado, pelo menos reconsiderado
parte das suas conclusões. E isso se daria não por defeitos ou
falhas reveladas, mas pelo excesso de talentos e virtudes.
Sábia natureza humana que criou a razão para filtrar os
pensamentos, antes deles se transformarem em palavras. Graças a essa
sabedoria divina, o marido e a mulher podiam caminhar juntos e
felizes, cúmplices na aprovação dos mesmos ideais, ainda que
discordantes nas formas.
Jorge fora aprovado pelo patrão, mas era a patroa que sonhava em
entregar-lhe o diploma com honras e méritos. Ambos desconheciam os
reais méritos que fariam jus às honrarias. Antes assim, poderiam
prosseguir tranquilos, para o compromisso social daquela manhã, sem
serem incomodados por suspeitas ou fantasias.
A solenidade para a qual foram convidados não seria afetada por
devaneios ou projetos, que não caberiam bem à dignidade do
ambiente. A dignidade seria mantida pelas aparências, mas não,
pelos sentimentos.
Ernesto olhou para Tereza e sorriu. Ela devolveu-lhe o sorriso, só
que desta feita pelos lábios, enquanto seus olhos se mantinham
serenos, quase frios, talvez distantes. Quem sabe, se não teriam
ficado dispersos no ar, e presos a um momento passado! Presos a outro
olhar, que não podiam esquecer, e por isso não conseguiam sorrir.
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