À MARGEM DO TEMPO - CAPÍTULOS 14 E 15


CAPÍTULO QUATORZE
Eu não preciso passar por isso” – repetia Jorge, diante da atônita Francisca.
Ela acabara de abrir as cortinas do quarto do patrão. Eram 10 horas, o sol já ia alto. Francisca não sabia se o patrão se dirigia a ela, ou se ainda estava mergulhado em sonhos.
Ela tropeçou numa cadeira junto à janela e o barulho trouxe Jorge de volta ao mundo real. Ele deu um salto brusco e se sentou à cabeceira da cama. Esfregando os olhos, virou-se para Francisca e perguntou:
Onde estou?
Ela não entendeu.
Em que ano nós estamos?
Ela entendeu menos ainda.
Jorge levantou-se e correu em direção à sacada da sala. Prédios altos, música alta, vizinhos barulhentos. E o galo? E o verde? Nada, a não ser o mundo de concreto, que encobria a visão das montanhas da Tijuca.
Ele olhou para Francisca, que se mantinha calada e tentando disfarçar o seu espanto. Jorge olhou para o relógio sobre a mesinha. Dez horas e 2 minutos. Vinte e seis de dezembro de 2009. Ele acordara novamente no futuro. Ou será que era sonho!
Francisca quebrou o silêncio e dirigiu-se ao patrão:
Quer o seu café agora, Senhor Jorge? A voz da governanta ecoou no quarto como um trovão, deixando Jorge atordoado. Ele precisava de tempo para se acostumar com essa nova viagem através do tempo.
Jorge disse que tomaria um banho e ia tomar o seu café da manhã na varanda. Francisca sentiu-se mais tranquila ao ouvir o patrão e saiu do quarto, deixando-o só com suas embaralhadas recordações.
Ele pensou em Carolina. Por onde ela andaria cento e quarenta anos atrás? O que estava pensando e sentindo, depois daquela festa da véspera? Que festança de aniversário, quanto sofrimento no coração! A solidão do quarto depois da festa e um dia seguinte sem mágoas cento e quarenta anos depois.
Jorge não sabia dizer, se preferia a confusão do passado ou do presente. Ele sentia saudade do passado e alívio pelo presente. Carolina não lhe saía da mente, Lúcia começava a recuperar o espaço perdido. Ele a amava. Mas, em quem ele estava pensando? Na menina distante ou na mulher reaproximada?
Jorge quis ver Lúcia, precisava falar com ela, sentir sua presença e ouvir sua voz. Com esses pensamentos confusos e desfocados, ele entrou debaixo de um jato de água quente, que o trouxe de vez para o momento presente.
Que saudade daquela ducha quente, quase fervente, como ele sempre gostou, e que sentira tanta falta nos últimos tempos! Ele se deixou tomar por um prazer indescritível, que só os que se deliciam com uma ducha de água quente sobre a pele poderão entender. Ele sossegou a mente, deixou a água escorrer pelo corpo e ficou quieto por um bom tempo.
Quando sentiu que a preguiça se fora e que seus pensamentos voltaram a fluir naturalmente, Jorge se enrolou na toalha e saiu do banheiro, retornando de vez para aquela época da qual andara tão distante. Agora, ele se sentia perfeitamente consciente de quem era e onde estava.
O café da manhã estava delicioso, a manhã morna e encoberta, a alma dele radiante e aquecida. Era sábado, e a loja só seria reaberta na segunda. Ele teria o dia inteiro para se readaptar a rotina do mundo moderno. E esperava poder fazer isto ao lado de Lúcia.
Pensando bem, Lúcia ia estranhar essa mudança de comportamento. Da última vez que se falaram, ainda insistira em reatar o relacionamento e fora ele que deixara claro que preferia ficar só. Ela ficou aborrecida, ainda que não tivesse muito direito a isso, afinal ela o abandonara quando ele mais se sentia apaixonado.
Ele sofreu muito com o rompimento, se isolara do mundo por alguns meses, indo de casa para o trabalho, do trabalho para casa, sem diversões ou digressões. O tempo tratou-o como um terapeuta eficiente, receitou-lhe a cura em doses homeopáticas, com o conta-gotas do amor-próprio, dia após dia, por um período múltiplo de sete, entre os setenta e os duzentos e dez dias.
Passada a crise e finda a convalescença, ele voltara a frequentar a roda de amigos e a recebê-los em seu casarão do Andaraí. Sem mágoas e sem falsas esperanças, a saúde amorosa voltou ao seu coração, e ele teve alguns casos muito passageiros e supérfluos, em que o amor esteve sempre em recesso e o prazer ficou por conta de um ou dois encontros.
Jorge relembrou tudo com muita serenidade, e sem confundir tempo e espaço. Carolina ficara para trás, Lúcia retomara o seu espaço. Um telefonema, uma surpresa, talvez um susto, e um encontro marcado para a noite. O restaurante de sempre, bom, muito bom, no Baixo Leblon.


CAPÍTULO QUINZE
Jorge aproximou-se, Lúcia sorriu e se afastou. Sem abraços ou beijos, apenas um aperto de mão. Gentilmente, ele ofereceu-lhe o braço, ela aceitou. Dirigiram-se para a mesa de canto, na qual muitos acertos e desacertos aconteceram entre eles, nos anos em que estiveram juntos.
A conversa começou interrompida por pigarros e gaguejos, com ambos inibidos e pouco à vontade. Aos poucos, o assunto começou a fluir, e logo falavam como nos velhos tempos, rindo e relembrando as rusgas a troco de nada.
A noite terminou com promessas e compromissos. Jorge ia refletir melhor sobre os seus apegos à vida de solteiro. Lúcia se comprometeu a ser menos rigorosa com as divagações de Jorge sobre o relacionamento a dois e os traumas que não superara, quando ela o abandonou.
O jantar serviu para alimentar não só o corpo, que, há muito, clamava pelas iguarias do século XXI, mas, de modo mais profundo, a alma, que se debatia entre a inocência de Carolina e a postura amadurecida de Lúcia.
Jorge voltou para casa, digerindo mais a conversa do que os deliciosos pratos servidos à francesa. A figura de Lúcia não lhe saía da mente, fazendo-o esquecer-se de Carolina. A maneira como ela o olhara enquanto conversaram, expressava mais admiração do que amor, isto é verdade, mas ele não pretendia usar aquele momento para fazer psicanálise.
Voltaria para a loja na segunda-feira, e se encarregaria de reformular suas rotinas e espaços. Ele estava cansado de trabalhar para um patrão, mesmo com o tratamento generoso que lhe dispensava o Senhor Ernesto. Ele não precisava receber ordens, nem do Senhor Ernesto, nem de ninguém. Ele era o proprietário de uma loja de antiguidades com fama e tradição entre os antiquários. Era hora de assumir o comando, e parar com essas viagens no tempo.
Mas, afinal de contas do que ele estava falando? Será que ele continuava acreditando que vivia em dois tempos distantes? Será que ele se deixaria envolver por esses caprichos da mente? Não, esses sonhos tinham de acabar!
Quando chegou à sua casa já era madrugada, e sentiu que estava cansado e que precisava repousar. Trocou de roupa, e mal teve tempo de relembrar o encontro, o sono cortou boa parte do enredo, que mal começara.
Jorge dormiu profundamente, e só acordou mais de cem anos atrás, no dia 27 de dezembro, dois dias depois da festa de Carolina. Estava exausto, os acontecimentos da festa deixaram-no triste e irritado. Carolina não agiu corretamente, flertou com o primo e deixou-o de lado. Os seus olhares pareciam chamá-lo, suas atitudes afastavam-no.
A sua mente recordou-lhe o jantar com Lúcia que ele preferiu deixar no esquecimento, num canto qualquer do futuro. Ele estava aborrecido e se sentia traído por Carolina. Ele preferiu se mortificar com as agruras de um amor frustrado do passado, do que se enternecer com as promessas amorosas do futuro. Jorge estava confuso, e sentia que estava perdendo o controle sobre o tempo.
Desgastado na alma e fatigado no corpo, ele desiste de levantar, e se atira na cama. Pega no sono, e acorda no futuro. Ele está pronto para sair de casa. Trajando um terno de corte moderno que lhe caía muito bem, Jorge pegou um táxi, e deu como destino, uma igreja na Gávea, templo luxuoso onde a nata da sociedade costumava casar.
Quando entrou na igreja, ele se surpreendeu ao ver Lúcia vestida de noiva, a caminho do altar. Jorge ficou chocado, sem entender o que estava ocorrendo. Ele e Lúcia tinham jantado na noite passada, reataram a relação, e até falaram de casamento.
Junto ao altar, um moço bem-vestido, aparentando o mesmo porte dele, aguardava a noiva. Ele se sentia estranho, e resolveu sair dali, e voltar para casa. Era sofrimento demais para quem, a cada dia, perdia contato com a realidade, e já nem sabia mais quem era.
Quem era Lúcia? Quem era Carolina? E afinal de contas, quem era ele? Essas perguntas mais do que o atormentavam, estavam consumindo-o. Ele não sabia mais o que fazer. Ficar acordado, e sofrer o presente. Pegar no sono, e padecer o passado.
O destino não lhe deu escolha, o sono era muito maior do que a vontade de ficar em vigília, jogando dados com o tempo. Dormiu, e sonhou que voltava para Carolina. Mas, ela não estava de volta para ele. Ela surge no seu sonho para lhe comunicar que seu primo Júlio pediu-a em casamento.
Carolina queria saber se Jorge aprovava a sua união com o primo. Ele ficou comovido, por haver percebido na consulta, uma confissão de Carolina de que estava à espera que ele ocupasse o lugar do primo. Quando Jorge está prestes a se declarar, confessando o seu amor e o desejo de casar com ela, alguém tocou no seu ombro, e ele ouviu uma voz: “Senhor, acabamos de chegar”.
Era o Tião, o seu empregado, condutor do tílburi, que o despertava, após deixá-lo descansar e dormir durante toda o trajeto, desde a loja até sua casa em Botafogo. A mansão era deslumbrante, e parecia pertencer a um nobre do império. Ou, talvez, até tenha mesmo pertencido.
Carolina o aguardava, na porta da chácara, onde ele residia desde o seu casamento. Do sogro recebeu não só a mão da filha, mas, uma ala do palacete dos Frade e a administração da loja de antiguidades.
Jorge justificou o avançado da hora, com o fato de ter se ocupado com a chegada de um carregamento de móveis, num vapor que atracara no porto no início da semana, e cuja papelada só ficara pronta, naquela manhã.
A conferência do mobiliário, adquirido na Inglaterra e na França, havia tomado o seu dia e o início da noite. Ela sorriu, e passou-lhe o braço na cintura. Ele beijou-lhe o rosto, carinhosamente, e entraram em casa. O futuro estava, definitivamente, deixado para trás, passando a fazer parte do seu passado.
Ele nunca conseguiu entender de onde retirara as ideias da vida num tempo futuro, mas, a felicidade, ao lado de Carolina, tratou de apagar aquelas lembranças, devolvendo-as ao futuro, do onde nunca deveriam ter saído.
Ele sabia que não foram sonhos, e sim uma realidade estranha e sem explicação.
Carolina foi preparar o seu banho, deixando-o na sala, saboreando um vinho do Porto, à espera do momento de relaxar numa banheira de água quente, como era do seu gosto.
No dia seguinte, despertando ao lado de Carolina, Jorge soltou um suspiro, e celebrou o canto do galo, que atravessou toda a chácara e penetrou pela janela do quarto. Ele sabia que o galo era real, a chácara de Botafogo era a sua nova residência e que ele se encontrava em 1871, casado com Carolina.
Senhor Ernesto e Dona Tereza passavam seus dias a cuidar do jardim e da horta, felizes e, cada vez mais unidos, à espera do neto que estava a caminho.
Jorge beijou Carolina, e antes de levantar da cama, pensou para si que o tempo não se deixa aprisionar, que o passado não passa de um lapso, que pode ser ontem ou amanhã, à margem do tempo.
FIM

















Comentários

  1. O conto a Margem do Tempo em tempos como esse que estamos vivendo, deixa muitas perguntas, ou talvez reflexões...Por um lado sentir esse lugar como resultado de um olhar, de como olhamos ou nos colocamos diante do que aí está, pode ser um certo alívio, ou melhor, maior leveza.
    Por outro lado, considerando que somos a partir de forças antes de nós, nossa ancestralidade. nossa descendência..um ser em evolução, em descoberta, em construção... e por ser também mistério, sem condições de descrever, mas de sentir e viver. Enfim, diante disso, me veio também a possibilidade das escolhas que fazemos, as vezes vivemos um tempo "presente" presos ao "passado" ou fixado num "futuro" que ainda nem sequer se conectou com o presente, com o momento.
    A leitura da Margem do Tempo, desperta vivencias passadas, que as questões humanas, os amores, as conquistas, ciumes, inseguranças, medo, dedicação e tantos outros permeiam nossa vida em qualquer tempo e espaço, é a nossa humanidade, mudando talvez a forma de lidar, uma vez que alguns momentos estamos muito jovens, ainda imaturos, e outras com mais experiencias, se tornando um pouco mais leve tranquilo em lidar com tantas emoções ao mesmo tempo.
    E com certeza muitos outros olhares se despertam com este texto, somos extensão do que vivemos, do que plantamos...se em algum momento fizermos uma viagem no tempo, vamos descobrir nossas raízes e o que de mais marcante aconteceu para chegarmos aqui do jeito que somos e estamos, tudo muito conectado, somos nós que nos perdemos no caminho ou fixados em algo. Algo que precisa ser liberado, deixar ir....

    ResponderExcluir
  2. Querida leitora, Adriana, esta obra foi inspirada no mito do tempo, no qual não podemos dizer se existe ontem, hoje ou amanhã.
    Tanto que eu não tomo partido, por um tempo ou outro, apenas deixo a cargo do leitor, chegar às suas próprias conclusões.
    Coloco algumas questões provocativas, pois se ele casou com Caroline, numa época passada, e tinha lembranças de um tempo futuro, como ele podia saber de fatos ocorridos naquela época?
    Então, fica a pergunta, se estaria ele vivendo em dois mundos ou em planos diferentes.
    E, ainda, pergunto se podemos viver em mais de uma dimensão?
    A física quântica diz que sim, o estudo das dimensões paralelas garante que não há dúvida que isto seja possível.
    E o leitor o que pensa?
    Com bastante perspicácia, encontro nos seus comentários, interessantes questionamentos, que me revelam a sábia postura, de substituir as respostas por sucessivas perguntas.
    Esta história é para ser lida diversas vezes, para que as inúmeras janelas vão se abrindo, e novas perguntas surjam ou algumas corajosas respostas assumam seus espaços.
    Meus parabéns pela iniciativa!
    Abraço.
    Gilberto.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

À MARGEM DO TEMPO - CAPÍTULOS 7 E 8

À MARGEM DO TEMPO - CAPÍTULOS 5 E 6

À MARGEM DO TEMPO - CAPÍTULOS 11, 12 E 13