À MARGEM DO TEMPO - CAPÍTULOS 9 E 10
Capítulo NOVE
As duas semanas seguintes foram de angústia e sofrimento para
Jorge. Ele não conseguia tirar Carolina do pensamento. Mas, é bom
que se diga que nem o desejaria.
Jorge sofria a dor dos amantes. A saudade era mais compensação
do que castigo. Se não fosse a saudade que sentia, ele não teria
Carolina ao seu lado, como parecia ter, graças ao sentimento que
alimentava na alma.
Jorge trazia Carolina dentro do peito, num sentimento contido que,
a cada instante, parecia querer romper todas as barreiras do bom
senso, e se transformar num berro sofrido de quem já não suporta
mais a dor.
Ele combatia a dor com o trabalho. Contra a solidão da noite,
protegia-se com estudos e pesquisas, devorando, até o início da
madrugada, os livros emprestados pelo patrão.
Os seus pensamentos, a qualquer distração, batiam asas em
direção a Carolina. Voavam no céu da contemplação, com o
azul-celeste de pano de fundo, em meio a sonhos e devaneios que só
mesmo os jovens apaixonados serão capazes de entender.
Os olhos de Carolina haviam sido fotografados pela lente da sua
memória. Os seus lábios sorridentes, sua expressão reticente, suas
feições suaves e serenas, seus trejeitos graciosos, seu jeito meigo
de falar, eram divinas recordações que prendiam a sua atenção por
horas intermináveis.
Os longos momentos de êxtase eram interrompidos, vez ou outra,
para o atendimento a um freguês ou para responder a uma indagação
do patrão. Cumprido o dever, reassumia o seu direito de sonhar, e
seguia a imagem de Carolina, sem prumo e sem rumo.
Carolina não vivia emoções muito diversas das que afligiam o
peito de Jorge. Com seu belo olhar distante, passava os dias olhando
para o céu, caminhando pelo jardim ou espreguiçando-se na rede da
varanda.
Ela amava, mas não tinha consciência dos seus sentimentos. Desde
aquele domingo da missa de bodas, ela cultivava uma saudade de tudo
que fizera ao lado de Jorge. E se não creditava a ele o gosto pelas
recordações, não conseguia imaginá-lo ausente.
O amor era uma linguagem nova na vida da moça. Se já o conhecia
de nome ou por descrições alheias, nunca antes o tomara para si.
Quem não desgrudava os olhos da filha era Dona Tereza. Ela logo
percebera os pensamentos distantes de Carolina, alertando o marido
que Carolina estava vivendo no mundo da lua. Não naquele satélite
distante, mas na musa inspiradora dos poetas apaixonados. Cantar a
lua é cantar o amor. Olhar para a lua é sentir o amor.
Dona Tereza concluiu que sua filha estava no mundo do amor. E nem
preciso foi subir aos céus para ouvir da lua as confidências de
Carolina sobre o amor que Jorge lhe despertara. Os mistérios do
coração de Carolina já poderiam ser revelados por seus suspiros
constantes e o olhar perdido no tempo.
Dona Tereza amava a filha e faria quase tudo para vê-la feliz. O
quase fica por conta do seu temperamento instável, responsável por
certas histórias de sua juventude, que a davam como uma alma
intrépida e aventureira.
O melhor é dispensar as meias palavras, e afirmar que Dona Tereza
amava mais a si do que a qualquer outra pessoa. Ela não se
sacrificava por nada, nem por ninguém, se não houvesse um interesse
pessoal por trás de suas boas ações ou de um plano bem tramado.
No caso do amor de Carolina por Jorge, se não havia um plano,
haveria um capricho. E seus caprichos costumavam transformar-se em
leis no tribunal da família. O Senhor Ernesto nunca lhe negava o
aval para sancionar seus decretos, alguns autoritários, é bem
verdade. E nem os parentes se negavam ao fiel cumprimento de suas
leis.
No meio desse turbilhão de sentimentos conflitantes apaixonantes,
encontrava-se o Senhor Ernesto, dedicado à família, compenetrado no
trabalho e fiel às suas amizades. Da filha, ele nada percebera. Do
empregado e exemplar discípulo, captara certo distanciamento, que
ele atribuíra à aplicação nos estudos e pesquisas das artes. Da
mulher, ele até recebera alguns comentários sobre o comportamento
da filha, que ele considerara coisas da idade.
Sem buscar unir as pontas da trama, o Senhor Ernesto preferiu
permanecer alheio a tudo e a todos, como era do seu temperamento.
Envolvido com o trabalho e com os ensinamentos que vinha
transmitindo a Jorge, ele vivia momentos de uma indescritível paz de
espírito, entusiasmado com os negócios da loja e com a evolução
acelerada dos conhecimentos adquiridos pelo empregado.
Os negócios haviam crescido muito nos últimos dias, o que tomava
o tempo de ambos, patrão e empregado, levando-os a jornadas muito
extensas e cansativas, porém amplamente compensadoras.
Jorge desempenhava as suas funções com a garra e a bravura de um
soldado num campo de batalha, atirando-se ao combate entre a
condecoração e a morte. Com ele, não havia meio-termo.
Os ensinamentos da manhã eram aplicados à tarde, com absoluta
segurança e correção, não se atrapalhando ao negociar uma peça
rara ou a simplesmente prestar informações sobre um objeto que
fosse motivo de pesquisa.
Havia momentos em que o Senhor Ernesto precisava solicitar ao
rapaz que se cuidasse um pouco mais, sob pena de cair doente. Essas
sinceras observações do patrão, pelo bem da verdade, pouco ou
quase nada influíam no ânimo do rapaz. Às vezes, pareciam até
surtir um efeito contrário, levando-o a trabalhar e a estudar cada
vez mais.
À noite, no seu quarto, entre um apontamento e outro, Jorge
deixava o pensamento flutuar ao sabor dos sentimentos que trazia no
peito, angustiado pela saudade de Carolina e exausto pela dureza do
trabalho a que ele mesmo se impunha.
Em seus delírios noturnos, Jorge se via amado por Carolina,
rejeitado por Lúcia, desejado por Tereza e desprezado pelo Senhor
Ernesto. E atormentado por amores e dissabores, ele ainda tinha
cabeça para ordenar livros e notas.
Ele não misturava as coisas do coração com os rigores da
obrigação. Ambos, pesados fardos, por ele conduzidos sem gemidos ou
lamentos. Eram encargos penosos que varavam as madrugadas e, em
muitas ocasiões, se encontravam com as primeiras luzes da manhã.
A sua aparência começou a preocupar o patrão que insistia em
lhe receitar festejos, prazeres e distrações. Dizia-lhe para fazer
amizades, frequentar bailes, buscar companhias femininas e cuidar
mais de si. Sem a distração e o prazer, afirmava-lhe o patrão, não
há trabalho que o zelo justifique.
Jorge ouvia calado, e ainda que não desprezasse o receituário,
os remédios não lhe caíam ao gosto. Rejeitava-os, pois os
considerava inócuos, diante das causas da sua doença.
O trabalho nem lhe causava o mal, nem lhe dava a cura, era um mero
paliativo para que pudesse conviver com o mal que afligia a sua alma.
Ele preferia aguardar a descoberta de um novo emplasto que, aplicado
sobre o coração, pudesse aliviá-lo daquele sofrimento sem fim.
Desde o domingo da missa, do passeio de braços dados com
Carolina, daqueles olhos belos e profundos que o acompanhavam agora
por 24 horas ao dia, que Jorge padecia de um peso no peito, de
calores estranhos no rosto e de um frio na alma.
Ele gostaria muito de poder vê-la. Este, sim, seria o remédio
definitivo para a cura de todos os seus males. Mas, como fazer? Ele
não tinha como sugerir esse tratamento, era preciso esperar.
Nas suas reflexões sobre a sua outra vida, ele também não
conseguia encontrar consolo. Por lá, Jorge sofria com a lembrança
de Lúcia. Essa mulher, até agora misteriosa para nós, entrara na
mente de Jorge pela mesma porta estreita por onde penetrara Carolina.
Seria uma boa pergunta, questionarmos sobre quem era Lúcia. Mas
melhor seria começar sabendo quem era ele, um homem vivendo em 1869
e alimentando recordações e amores, de mais de cem anos depois. Um
louco ou um profeta?
Jorge procurou a resposta em si, e não encontrou sensatez na
primeira hipótese. Gestos, atitudes e palavras não lhe pareciam as
de um louco. A mente reagia com agilidade e os sentidos estavam
aguçados.
Profeta, a Jorge parecia uma virtude para a qual não dispunha de
méritos suficientes. Os profetas costumam anunciar a palavra de
Deus, e ele nem sabia o que e como anunciar. As imagens que chegavam
à sua mente pertenciam a uma vida futura, mas com o sabor de
passado.
Jorge concluiu que nem profeta, nem louco. E nessa convicção,
ele embarcou numa viagem de volta para o futuro, onde encontraria
Lúcia, que parecia estar mais ao seu alcance do que Carolina.
Ele amara Lúcia apaixonadamente. Conhecera-a naquele domingo de
dezembro, na igreja de Santo Afonso. Viram-se de passagem, dias
depois, nas areias da praia de Ipanema. Conversaram e dançaram numa
noite inteira, na festa de 15 anos da irmã daquele amigo que os
apresentara na saída da igreja.
Daí ao namoro, um passo natural. Ela era livre e encantadora.
Ele, romântico e sedutor.
O amor dos dois não enfrentou oposições ou ressalvas.
Atiraram-se um nos braços do outro, e ambos, nos braços do mundo.
Consumiram os seus tempos, lado a lado, construíram uma história,
sólida e prazerosa.
Ele estudava Direito, pela vontade do pai, e amava Lúcia e odiava
os estudos, por vontade própria. Formou-se num ano da década de
setenta, tropeçando no Latim, nas Leis e principalmente na
frequência. Ele assistiu, durante os anos de faculdade, mais a Lúcia
do que às aulas.
Um dia, acordou doutor. Sem talento, nem entusiasmo. Amou muito a
Lúcia, e tempos depois, bem depois mesmo, dedicou seu grande amor ao
comércio de antiguidades.
Com a morte do pai, ele herdara a loja de antiguidades. Assumindo
esse novo amor, o antigo amor por Lúcia foi perdendo força. Ela
percebeu e reagiu. As primeiras brigas começaram a surgir. Ela
exigia atenção em tempo integral. Entre o amor e o dever, ele
tentou contentar os dois. Não o conseguiu.
Amaram-se por dez anos, e nunca falaram em casamento. Um dia, de
repente, começaram a fazer planos para casar. Projetaram castelos no
ar e enxovais na terra. No meio do projeto, o relacionamento, tão
duradouro quanto frágil, começou a anunciar o início do fim.
Jorge e Lúcia amaram-se no descompromisso da liberalidade dos
tempos modernos, e se separaram no desencontro a caminho do altar.
Jorge recordava os fatos com amargura – o encontro, o amor, o
desencontro, o rompimento e a separação. Ele recordou que
pressentia que a relação não ia bem, mas ele não estava preparado
para perder Lúcia. Com ela, foi-se um pedaço de si. Sofreu
desesperadamente, primeiro pela separação, depois pela solidão.
Lúcia deixou-o pelo amigo que os apresentou. Ela perdeu-lhe o amor,
primeiro, e depois a amizade. Ele perdeu muito mais, quase a própria
vida.
Nunca mais, ele amou outra mulher. Ou por ela ou por cautela,
Jorge trancou-se dentro de si, e tornou-se um solitário contumaz.
Foi amado e deixou-se amar. Retribuía o amor com atenções, mais
não podia, e nem queria.
Atirou-se ao trabalho para esquecer o vazio da alma. Se não
chegou a preenchê-la inteiramente, deu-lhe uma meia carga. Assim,
conseguiu ir levando a vida e não permitir que a vida o levasse.
Lúcia, por mais de uma vez, tentou retornar à sua vida. A todas
as tentativas, ele rechaçou. Com cortesia e respeito, é verdade,
mas com firmeza e coerência.
A razão de não aceitá-la de volta, surpreendeu a muitos, mas
ele apresentava o seu argumento que lhe parecia irrefutável – ele
a amava profundamente. Assim, não queria correr o risco de vir a
reabrir cicatrizes que tanto custaram a se fechar.
Jorge amava Lúcia, e amou-a até onde ele ainda consegue lembrar
ou entender a sua existência. Agora, entre Lúcia e Carolina, entre
o amor traído e o amor sonhado, Jorge vivia aquele momento entre a
loucura e a profecia.
Entre a recordação e a reflexão, a alma, enfim, cedeu espaço
ao corpo. E este, cansado do trabalho e ansioso pelo dia seguinte,
abandonou-se ao sono, tranquilo e sem mágoas.
Deixemos o jovem sonhador a recuperar suas energias, para que
esteja bem preparado para as emoções que se aproximam. Se ele sonha
com Lúcia ou Carolina, respeitemo-lo no amor que sente por uma ou
outra. Ambos são sentimentos puros que vêm do fundo da alma.
Dona Tereza é que gostaria de ocupar um espaço nesses sonhos. Se
tal vier a ocorrer, porém, não haverá de ser um impulso da alma,
senão somente do corpo, em meio a fantasias daquele corpo jovem e
saudável.
CAPÍTULO DEZ
O ano de 1869 estava chegando ao fim. Jorge vivia casmurro com
seus péssimos humores. Procurava calar, quando antes, exagerava no
falar. O seu pensamento estava todo voltado para o trabalho e para
livros que tratavam de antiguidades.
Ele já não se permitia o lazer, nem mesmo aos domingos. Os
domingos, ele os tratava como um dia comum. Despertava cedo, e
punha-se a ler, como se quisesse, num só dia, absorver todos os
conhecimentos contidos nos livros da biblioteca do patrão, que os
colocara ao seu dispor.
Os seus pensamentos, vez por outra, alçavam voos e lá se iam
através dos tempos, atravessando tempo e espaço em direção a um
ponto futuro, do qual, um dia, ele surgira ao sair de um sono ou de
um sonho, ele não sabia ao certo.
Ao lá chegar, Jorge punha-se a recordar os fatos vividos naquela
época, tão íntimos quanto os que ele vinha vivendo, numa outra
época, mais de um século atrás. O portal de saída e de entrada
localizava-se no dia 17 de novembro, quando sua vida projetou-se no
tempo, deixando 2009 e desembarcando em 1869.
Cansado de pensar em busca de resposta, Jorge retomou a leitura.
Ele a interrompera quando a noite já espreitava a madrugada, só
para beliscar alguma coisa.
Dia a dia, o seu corpo expunha-se a levá-lo para cama, por conta
de uma doença grave. O caminho vinha sendo traçado, e se ele não o
traçou, nada vinha fazendo para evitá-lo. Uma semana ou mais, o
separava de uma fraqueza nos pulmões, daquelas que a cura fica por
conta dos milagres.
O destino decidiu interferir, nem médicos, nem milagres, um
bilhete salvou a vida do rapaz. Ele recebeu-o das mãos do patrão,
que o entregou com um sorriso benevolente, talvez malicioso, ainda
que este seja um termo que não se amolda à figura do Senhor
Ernesto. Por isso, fiquemos com a benevolência em lugar da malícia.
No estado em que se encontrava Jorge, a benevolência era mais
apropriada. Um gesto malicioso seria forte demais, para quem, com as
mãos trêmulas, acolheu e leu o convite de Carolina.
As doces palavras impressas no papel eram o emplasto milagroso
que, aplicado ao coração do pobre rapaz, trouxe-o de volta a vida.
Ele lia e relia o bilhete, e a cada leitura um novo surto de vida
percorria todo o seu corpo. Já nem falo da sua alma que, à vista do
bilhete se iluminou e ascendeu aos céus, deixando-o meio desalmado
por algum tempo.
Calma meus curiosos leitores, logo satisfarei a curiosidade de
todos aqueles que amam e sofrem com as paixões alheias.
Pensando bem, Carolina apenas procurou ser amável, nada além de
amabilidade. Sincera ou contida, quem poderia saber? Nem ela, talvez.
Jorge chegou às primeiras divagações, mas se conteve, e não mais
tentou adivinhar o que havia por trás da mensagem.
Caro, Jorge.
Muito me farás honrada, se fazendo presente à minha festa de
aniversário, no próximo dia 25, quando completarei 18 anos.
Comemoraremos o nascimento do Cristo e o meu também, com uma ceia
natalina.
Conto com a tua presença.
Carolina.
Não coloquemos, no bilhete, valores e intenções que ele não
possui. Deixemos que Jorge o faça, não por direito, mas por
consolo. Há de fazer-lhe bem, imaginar que Carolina escreveu aquelas
palavras pensando nele. Não o foi, garanto-vos. Outros jovens, que
gozavam da amizade da moça, receberam convites idênticos, sem
qualquer adjetivo a mais ou a menos.
Não nos cabe julgar as razões para Carolina não dar conotações
pessoais aos seus convites. Quem sabe, talvez, cautela de donzela,
para não deixar escapar num verbo, menos ainda num adjetivo, um
segredo íntimo que não gostaria de revelar.
Por desconhecer tais cuidados, Jorge buscou em cada palavra um
sinal que sugerisse um pouco mais do que um simples afeto. Leu e
releu aquelas frases despretensiosas, sem encontrar motivos para
crenças ou desesperanças.
Pôs o bilhete no bolso e ficou a remoer as palavras na mente,
depois de deixá-las gravadas na memória.
Jorge não era ingênuo, ele sabia que cada linha escondia
preferências ou favoritismos, que Carolina não quis demonstrar.
Certamente, não seria pelo conteúdo da mensagem que ele cairia nas
graças de Carolina. Jorge encontrou na ousadia da moça em convidar
um empregado da loja do pai, o caminho mais promissor para satisfazer
o seu ego.
Concluída essa etapa, sua alma tratou de revigorar o corpo.
Então, o corpo e a mente deram as mãos e trataram de se preparar
para o grande dia. Havia muito a fazer, era preciso recuperar o
entusiasmo que fora negligenciado nos últimos dias.
Jorge renasceu em vida. Cantarolava, enquanto trabalhava. Sorria e
sonhava, enquanto fazia uma coisa e outra.
O Senhor Ernesto olhava-o de soslaio, com um jeito irônico. Ele
sempre soubera da causa dos achaques do discípulo, assim como estava
ciente do que lhe devolvera a saúde.
As enfermidades do coração precisam de altas doses de esperança
para que se façam as curas. Tanto as físicas, como as sentimentais.
E não vos deixeis iludir, caros leitores, umas levam às outras.
O ritmo sempre intenso do trabalho de Jorge, que perdera o viço,
ganhou uma nova e encantadora coreografia. Era como que um bailado
clássico, onde o bailarino deslizava na ponta dos pés, indo de um
canto ao outro do palco, suave e solenemente, como se não tocasse o
chão.
Nos dias que se seguiram, o jovem transpirava felicidade, que se
irradiava por toda a loja, penetrando na alma dos fregueses, que se
deixavam encantar pelas mais simples palavras de exaltação à
beleza de uma ou outra peça em exposição. As vendas, com isso,
aumentaram, pois todos queriam para si cada um daqueles inestimáveis
tesouros. Os negócios se ampliavam, e com eles o conceito de Jorge
junto ao patrão e à freguesia.
Data dessa época, o início de uma amizade que viria a
influenciar no apreço de Jorge pelo jornalismo. Que fique o registro
do nome desse empresário, dono de um conceituado jornal. Chamava-se
Evaristo, Evaristo Bispo, e procurara a loja de móveis com a
intenção de encontrar uma escrivaninha para sua mesa de trabalho.
O jornal do Bispo, como muitos costumavam brincar, começara a
circular fazia muito pouco tempo. Evaristo estava determinado a
escrever certas verdades políticas, que ele julgava andar distante
das folhas que circulavam na corte, todas elas de conteúdo duvidoso.
Este conceito era pessoal, sua marca registrada, que registramos, sem
discordar, nem endossar.
Deixemos que
os brios do combativo homem de imprensa falem por si. Ouçamos e
calemos, diante de tamanha ênfase discursiva com que ele brindou o
nosso aprendiz de comércio.
O entusiasmo de Jorge, que já não era pouco desde o convite de
Carolina, cresceu ainda mais com a oratória do jornalista, levando-o
a delirantes aplausos. Ele aprovava tudo que dizia o jornalista.
Menos entusiásticos não eram os aplausos do patrão, diante da
sua arte de negociar. Entre uma afirmativa e outra, Evaristo ia sendo
induzido a optar por esta ou aquela peça, por uma ou outra condição
de pagamento, deixando-se encantar e envolver pelos artigos expostos
à sua frente.
Oratórios e discursos, escrivaninhas e editoriais, realidades e
sonhos, misturaram-se naquela hora e meia de conversa e de negócios.
O tema central dos discursos de Evaristo era a liberdade, um ataque
violento à censura e à interferência do Estado sobre a imprensa.
Se, findas as conversas e as negociações, o estilo do móvel
adquirido nada tinha em si que o fizesse lembrar um sentimento de
liberdade, não se pode deixar de reconhecer que foi a promessa de um
jornal liberal que encaminhou e avalizou a concretização do
negócio.
A cidade ganharia, dentro de alguns dias, uma nova tribuna
literária, e Jorge acabara de ganhar um amigo e admirador que
haveria de lhe ser mais útil do que o jornal à cidade.
Feitas as contas e ajustados os pagamentos, que nem somaram
importância tão vultosa, quanto vós leitores podíeis imaginar,
diante da ênfase de minha narrativa, Evaristo deu um forte abraço
em Jorge e convidou-o a visitá-lo nas oficinas do Correio Liberal.
Abria-se uma porta para o futuro que, nem Jorge, nem o Senhor
Ernesto e menos ainda Evaristo, poderiam imaginar onde ia chegar. E,
talvez, não chegasse a lugar nenhum.
Deixemos de lado, as premonições e suposições, e nos
concentremos nos efeitos imediatos que a negociação provocou na
vida de Jorge. O Senhor Ernesto não cansou de tecer elogios à
conduta do rapaz, mal o freguês se retirou da loja. Os dois
olharam-se com um olhar de cumplicidade, e iniciaram um diálogo
silencioso, que começou com um sorriso e terminou com um longo e
apertado abraço.
Desfeito o abraço, surgiu uma surpreendente e efusiva declaração:
– Se
continuares assim, dentro de muito breve te farei meu sócio.
Jorge sentiu as pernas tremerem, mal acreditando no que acabara de
ouvir. Controlou-se, e disfarçando a emoção agradeceu a promessa
do patrão. A humildade com que reconheceu a sua pouca experiência e
imaturidade para participar da sociedade, tornou-se o seu mais forte
trunfo para confirmar a recomendação e acelerar a promoção. O
patrão não retrucou, antes calou. O silêncio foi mais um crédito
na conta dos méritos que o destino resolvera abrir, naquele dia, em
nome de Jorge.
Existem dias em que a vida decide premiar alguns predestinados,
por origem ou méritos. Jorge estava num desses dias, ainda que
fossem lançamentos futuros, créditos a serem lançados em conta,
para sacar num futuro próximo. Por enquanto, tudo não passava de
promessas. Mas, que promessas!
Jorge, no momento em que cerrou as portas da loja, encerrando o
expediente do dia, o fez com a certeza que tinha aberto muitas
outras, de acesso ao futuro.
Despediu-se do patrão, ajudou-o a subir no carro. Esperou a
partida dos cavalos, e retornou à loja, a caminho do seu quarto.
Enquanto percorria o caminho de volta, pensou na família do
Senhor Ernesto, em Dona Tereza e Carolina. Imaginou-as aguardando a
chegada do chefe da família, à espera do cair da noite.
Aqueles pensamentos fugidios o aproximavam da família do Senhor
Ernesto. Como ele gostaria de poder dizer, “da nossa família”!
Com esta reflexão, encerramos o dia de Jorge, conduzindo-o ao seu
quarto, pra que possa repensar a vida e refletir sobre a força do
destino.
Ontem, ele jazia derrotado no campo de batalha à espera que uma
lança fosse cravada em seu peito. Hoje, ele encerra o dia vitorioso,
como o grande herói de uma guerra sem perdedores, nem feridos. Uma
guerra onde só um figurante participa de todas as batalhas. Ou ele
se torna herói ou morre, não há meio-termo.
Não houve meio-termo, o herói foi consagrado, sem mortes.
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